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Filosofia da Terra

Furar o Nevoeiro da Ideologia Burguesa. O Bem, a Verdade e o Belo - Paradigmas Unidos da Vida. Um Olhar e uma Voz Diferentes, Livres, Progressistas e Revolucionárias. Filosofia, Artes, Política, Acontecimentos, Reflexões.

























































tens tudo para seres
o teu corpo desflorou
em subtilezas de dedos fendidos no desejo puro da carne

és a respiração do sangue
nas fontes rebentadas da terra
ardes no lugar dos dias abertos

não te masturbas se o não queres
cais no corpo ferido do teu amante
não é preciso que a morte venha
para dar sentido a músculos repartidos por corpos atados
não são precisos espinhos para uma rosa vermelha

a dor não explica o que vale um parto
Se uma criança chora é por mais leite
Mas tu és grande em teu porte
Em teus passos largos passa diante
da pedagogia do sofrimento

não é essa podridão que te transporta
é o licor de um fruto cujo vício
é renascer de um vício maior
Não abdiques não sonhes encontra-te presente
afirma-te futuro agora



tens tudo para seres
o teu corpo desflorou
em subtilezas de dedos fendidos no desejo puro da carne

és a respiração do sangue
nas fontes rebentadas da terra
ardes no lugar dos dias abertos

não te masturbas se o não queres
cais no corpo ferido do teu amante
não é preciso que a morte venha
para dar sentido a músculos repartidos por corpos atados
não são precisos espinhos para uma rosa vermelha

a dor não explica o que vale um parto
Se uma criança chora é por mais leite
Mas tu és grande em teu porte
Em teus passos largos passa diante
da pedagogia do sofrimento

não é essa podridão que te transporta
é o licor de um fruto cujo vício
é renascer de um vício maior
Não abdiques não sonhes encontra-te presente
afirma-te futuro agora



tens tudo para seres
o teu corpo desflorou
em subtilezas de dedos fendidos no desejo puro da carne

és a respiração do sangue
nas fontes rebentadas da terra
ardes no lugar dos dias abertos

não te masturbas se o não queres
cais no corpo ferido do teu amante
não é preciso que a morte venha
para dar sentido a músculos repartidos por corpos atados
não são precisos espinhos para uma rosa vermelha

a dor não explica o que vale um parto
Se uma criança chora é por mais leite
Mas tu és grande em teu porte
Em teus passos largos passa diante
da pedagogia do sofrimento

não é essa podridão que te transporta
é o licor de um fruto cujo vício
é renascer de um vício maior
Não abdiques não sonhes encontra-te presente
afirma-te futuro agora



neste tempo vorticista o teu relógio
não é um anacronismo
Por isso pergunto-me qual a razão
da culpa que te faz moderno
porque ao fim e ao cabo nos perguntas
ainda o que é ser-se moderno

As pessoas deitam-se com corpos
e preconceitos
enervam-se de um contacto enfadonho
e sabe-lhes ainda a vício
os dons do néctar salgado

Os teus conterrâneos de Königsberg
acertavam horas pelos teus passos
Agora só no quarto das traseiras
uma luz penetra empoeirada a sala
a que tu mantinhas limpa com tudo
no seu lugar num lugar para tudo

condenaste a ciência para dar esperança à fé?

a ciência é dura
e todos o sabem
O corpo mortal
todos desesperam

Mas aí por trás da
muito mal contada
corcunda nascida
de hábitos a metro
com regras de monge
contando as horas
a pisar um solo
frio com pés chatos
o dever ser livre
na verdade altiva
ergueu as asas

Por isso respondo
Foi seres moderno
em teu sapere aude
que até dentro em nós
inda levas guerra
à paz podre feita
dos tímidos crentes
desta presente era



neste tempo vorticista o teu relógio
não é um anacronismo
Por isso pergunto-me qual a razão
da culpa que te faz moderno
porque ao fim e ao cabo nos perguntas
ainda o que é ser-se moderno

As pessoas deitam-se com corpos
e preconceitos
enervam-se de um contacto enfadonho
e sabe-lhes ainda a vício
os dons do néctar salgado

Os teus conterrâneos de Königsberg
acertavam horas pelos teus passos
Agora só no quarto das traseiras
uma luz penetra empoeirada a sala
a que tu mantinhas limpa com tudo
no seu lugar num lugar para tudo

condenaste a ciência para dar esperança à fé?

a ciência é dura
e todos o sabem
O corpo mortal
todos desesperam

Mas aí por trás da
muito mal contada
corcunda nascida
de hábitos a metro
com regras de monge
contando as horas
a pisar um solo
frio com pés chatos
o dever ser livre
na verdade altiva
ergueu as asas

Por isso respondo
Foi seres moderno
em teu sapere aude
que até dentro em nós
inda levas guerra
à paz podre feita
dos tímidos crentes
desta presente era



neste tempo vorticista o teu relógio
não é um anacronismo
Por isso pergunto-me qual a razão
da culpa que te faz moderno
porque ao fim e ao cabo nos perguntas
ainda o que é ser-se moderno

As pessoas deitam-se com corpos
e preconceitos
enervam-se de um contacto enfadonho
e sabe-lhes ainda a vício
os dons do néctar salgado

Os teus conterrâneos de Königsberg
acertavam horas pelos teus passos
Agora só no quarto das traseiras
uma luz penetra empoeirada a sala
a que tu mantinhas limpa com tudo
no seu lugar num lugar para tudo

condenaste a ciência para dar esperança à fé?

a ciência é dura
e todos o sabem
O corpo mortal
todos desesperam

Mas aí por trás da
muito mal contada
corcunda nascida
de hábitos a metro
com regras de monge
contando as horas
a pisar um solo
frio com pés chatos
o dever ser livre
na verdade altiva
ergueu as asas

Por isso respondo
Foi seres moderno
em teu sapere aude
que até dentro em nós
inda levas guerra
à paz podre feita
dos tímidos crentes
desta presente era

(Ou de como tanto os defensores quanto os detractores do eduquês continuam a laborar num erro, apesar do neologismo já estar em desuso: lutam, como Dom Quixote, contra uma coisa que não existe. Mas como é necessário um objecto contra o qual o seu conceito se deve medir e a sua polémica se justificar, é preciso construí-lo, mesmo que não exista. E, mesmo que já não se fale muito nisso, talvez seja porque infelizmente já se interiorizou e naturalizou, em especial nas disciplinas Humanísticas, que nas outras aparece mal embora já tenha deixado algumas mossas que se tentam em pânico corrigir, o relativismo pós-modernista do desinteresse subjectivista pela forma, pelo método, pela objectividade na aprendizagem, e mesmo pelos conteúdos, se acaso estes não saírem da cabeça dos alunos nos seus pequenos ensaios arbitrários e com pouco embasamento cultural.)
Carlos Fiolhais, no “blogue” De Rerum Natura (título que, pelas categorias positivistas implícitas – racionalismo idealista lógico-abstracto, a escolástica do nosso tempo -, que o norteiam, não deveria fazer-se apadrinhar pelo grande filósofo materialista Lucrécio), escreveu, vai para uns meses, um comentário encomiástico ao livro de E. D. Hirsch Jr., Cultural Literacy, citando um glossário, apresentado por este, dos temas maiores da dita corrente pedagógica contemporânea – aliás dividida em doutrinas que abraçam princípios muitas vezes opostos, como é o caso da pedagogia por objectivos fundada num comportamentalismo moderado (ironicamente mais próximo dos críticos do “eduquês”), e o condutismo ou construtivismo, pedagogia activa orientada – apesar dos seus limites teóricos – para o desenvolvimento integrado da personalidade, no seu carácter, sentimentos, pensamento crítico e conhecimentos, que só aparentam serem palavra vagas e mágicas porque não se prestam, como muitas vezes o positivismo exige, a meras definições categoriais mas designam aspectos dum processo à vez analítico e sintético – e sarcasticamente intitulada no nosso pequeno canto de “eduquês” (não sendo um conceito, não se refere objectivamente a nada).
Eis o glossário que, tal como foi exposto no comentário de Carlos Fiolhais, aparece descontextualizado das suas origens históricas e filosóficas, da sistemática teórica e da prática que lhe dá sentido:
«1.Concepção instrumental da educação:
“aprender a aprender”,
“aptidão para o pensamento crítico”,
“aptidões metacognitivas”,
“aprendizagem permanente”.
2.Desenvolvimentalismo romântico:
“aprendizagem ao ritmo dos alunos”,
“escola centrada na criança”,
“diferenças individuais dos alunos”,
“estilos individuais de aprendizagem”,
“inteligências múltiplas”,
“ensinar a criança e não a matéria”.
3.Pedagogia naturalista:
“construtivismo”,
“aprendizagem cooperativa”,
“aprendizagem por descoberta”,
“aprendizagem holística”,
“método de projecto”,
“aprendizagem temática”.
4.Antipatia ao ensino de conteúdos:
“os factos não contam tanto como a compreensão”,
“os factos ficam desactualizados”,
“menos é mais”,
“aprendizagem para a compreensão”.»
Carlos Fiolhais (de resto um cientista que respeito com toda a minha humildade dentro da área científica que domina como poucos, a física) sustenta, por exemplo – sendo esta uma tese central do chamado “eduquês” -, que “aprender a aprender” «é, em geral, apenas um jogo de palavras que inebria quem as profere. [...] Nesta concepção educativa, interessa mais o instrumento – a cana de pesca – do que propriamente o peixe. Quem diz isso é capaz de ficar horas perdidas sem pescar nada, não se importando nada com isso. De resto, que diz isso parte de um erro: que se pode separar o conhecimento factual da atitude para o adquirir. Como se poderão transmitir atitudes em abstracto sem objectos que as exijam?»
Totalmente de acordo com a última frase. Mas não estará Carlos Fiolhais a interpretar a expressão “aprender a aprender” distorcendo-lhe o sentido através da sua descontextualização das teorias e das práticas de ensino-aprendizagem que a tomam como lema, claro que não por má-fé mas por desconhecimento destas? Não estará, pelo menos, a ignorar a seriedade dos problemas que levanta ocultada pelos documentos e pelas práticas dos que, pelo contrário, a usam seja de maneira preguiçosa seja precisamente por má-fé e oportunismo político, estatístico e populista, sendo que este sim é um dos obstáculos principais – junto com a concepção pragmática, instrumental, operativa do saber – à educação que devemos ter?
Senão vejamos. A “escola nova”, na sua recepção mais primária mas com má-fé nas altas instâncias do poder educativo, de origem romântica mas instrumentalizada nas últimas décadas para a formação de jovens de carácter cegamente competitivo e com uma atitude utilitária para com o conhecimento e a realidade humana e natural – ou seja, para a educação dos jovens no empreendedorismo focado na acumulação de capital, na concorrência brutal entre empresas sem misericórdia para com os trabalhadores, portanto também associado à criatividade que isso impõe (quem não quer ter um telemóvel “touch screen”, que dá mais sensualidade à comunicação e sentido à vida?), assim como à cobiça, à vaidade, ao consumo desenfreado necessário à manutenção deste sistema económico -, a “escola nova”, dizia, é ideologicamente pedocêntrica (os direitos do homem estendem-se aos da criança simultâneamente à medida que se vai cumprindo a ética formal burguesa, universalizante ‘a priori’, e na medida em que se vai tornando um ser de consumo imprescindível para a acumulação capitalista), construindo-se a partir da noção de aprendizagem, subordinando a mundividência dos adultos à estrutura cognitiva, expectativas e motivações dos alunos, sem compreender – ou fazendo crer que o desconhece – que a estrutura cognitiva não se desenvolve por geração espontânea nem que as motivações das crianças e adolescentes são inatas mas constituem condutas mobilizadas pelos interesses do mundo adulto que as rodeia. É que até os jogos infantis foram de invenção adulta.
Os traços mais característicos da chamada “escola nova” é – abstraindo de tudo o que distingue as diversas escolas “novas” -: – horror ao método expositivo, considerado como violência mental, pois pretende impor o universo cognitivo e afectivo do professor ao universo incomensurável (melhor dizendo, aberto às sempre novas solicitações concorrenciais da sociedade civil) do aluno; – a escola deve ter a missão de formar personalidades (diga-se, caracteres competitivamente agressivos, embora civicamente respeitadores, porque é do interesse de todos que a sociedade pelo menos viva numa harmonia formal, de resto essencial) e não exclusivamente mentes.
A “escola nova” basear-se-á pois, num modelo de não-directividade, valorizando a eficácia, o êxito, a realização, numa perspectiva de criatividade associada ao lucro económico empresarial, ao sucesso militar, ao poder político, às artes, domesticadas pela sua institucionalização como objectos de prestígio, conduzindo a uma sociedade de estatutos sociais discriminados na forma duma méritocracia, que fez grande parte do sucesso da nação norte-americana, e a miséria de muitas outras.
Porém, o próprio modelo tradicional, directivo, magistral, sob a capa da racionalidade, já visava sobretudo objectivos pragmáticos, promovendo também a ideologia do sucesso.
Só que a escola magistral já não se aplica ao nosso tempo (parece indicá-lo o processo de Bolonha), para o qual não interessa saber muito – o porquê, o fundamento, o enquadramento sintético – mas saber onde ir buscá-lo e saber operacionalizá-lo especializadamente nos objectivos reprodutivo e criativo-concorrenciais – o objectivo competitivo e o como se pode alcançá-lo.
Muito mais se poderia dizer sobre a nova “escola nova”, tão apreciada pelos actuais poderes políticos e económicos. Não podendo desenvolver igualmente todos os tópicos correlatos e associados, procurarei esclarecer então o sentido histórico-filosófico e o verdadeiro significado da expressão “aprender a aprender”, injustamente maltratada quer pelos críticos quer pelos adeptos institucionais do “eduquês”.
Ela tem raízes inimaginavelmente antigas, socráticas e isocráticas, mas podemos começar com o grande filósofo alemão Immanuel Kant e com a sua “Informação acerca da orientação de cursos no semestre de Inverno de 1765-66″, que incidiu sobre dois tópicos: reflexão sobre a pedagogia em geral e reflexão sobre a didáctica da Filosofia.
O seu texto, como não podia deixar de ser, representa uma revolução coperniciana na pedagogia, fornecendo as bases filosóficas para uma escola nova, que nada tem, como veremos, da caricatura a que actualmente foi reduzida: o ensino-aprendizagem não deve girar em torno de saberes já constituídos e dogmáticos mas são os saberes que devem girar à volta do homem, como produtos das suas faculdades e portanto, no reconhecimento tanto do carácter determinante da actividade cognoscitiva do indivíduo como da ambição sistemática, necessária embora muitas vezes mal fundada, da razão humana, saberes susceptíveis de um trabalho de revisão crítica pelo esforço de assimilação prática, ética, estética e intelectual da experiência e da experimentação a que todo o ser humano pode sujeitar as coisas a fim de torná-las seus objectos. Assim, saber fazer uso do entendimento é para Kant, como escreveu em “O que são as Luzes”, ousá-lo contra todas as formas de tirania intelectual e moral, seja ela mundana seja dita transcendente.
A pedagogia de Kant não pode pois ser ignorada, por mais defeitos que presentemente se lhe possa apontar.
No que respeita a uma teoria geral da educação, Kant inscreve-se no contexto da pedagogia do século XVIII. É influenciado por Rousseau e sobretudo por Basedow, que introduz o jogo, o trabalho manual e a educação física no currículo escolar. Kant denuncia a posição paradigmática da pedagogia do século XVIII, que é a da ideia de que o estudo é necessariamente um esforço violento imposto, centrado no ensino ignorando as particularidades do processo de desenvolvimento infantil.
Todavia Kant também critica a Basedow um excessivo sensorialismo e emotivismo, assim como a demasiada importância conferida à ludicidade. O projecto kantiano valoriza a disciplina e o respeito pela ordem escolar, na medida em que ela consiste num instrumento de orientação dos alunos para o desenvolvimento sistemático, metódico, das suas aptidões e conhecimentos, considerando igualmente que as recompensas (behavioristas, diríamos agora), supostamente motivos básicos da acção numa perspectiva hedonista, tendem a mercantilizar a educação, no seu próprio seio, pervertendo o seu sentido e valor.
Na verdade, uma vez que a educação consiste numa transformação não-natural da criança e do adolescente, exigindo a mobilização da noção de dever, qualquer progresso – mesmo tendo que ser produto da actividade construtiva do aluno – obrigará a um esforço garantido pela disciplina e pelo respeito perante as regras pedagógicas instituídas.
Aliás, disciplina, esforço e espontaneidade na aprendizagem não são termos contraditórios, antes pelo contrário. Para Kant, a educação é o meio pelo qual o homem adquire a sua humanidade e, posto que ela sirva para o homem adquirir todas as suas virtualidades, deve torná-las actuais, realizadas. Ora, a realização de qualquer mudança obriga a um esforço, para o qual a ausência de inclinação natural, espontânea, para o conhecimento – ao invés do afirmado por Aristóteles -, se torna necessária a disciplina.
Kant preconiza um esquema progressivo na formação integral do homem, esquema que segue a génese do próprio conhecimento (a pedagogia não é mais do que a doutrina dos processos práticos de aquisição do conhecimento junta a uma ética e a um projecto), com as seguintes etapas: intuição, conceitos do entendimento, integração dos conceitos empíricos nos seus fundamentos, constituição da ciência mediante o encadeamento bem fundamentado dos juízos.
Há portanto, no projecto educativo da escola nova de Kant, um plano prévio e estratégico de estudos que não se coaduna ‘a priori’ de maneira harmoniosa com as inclinações espontâneas dos alunos e com os seus interesses imediatos, dispersos e incoerentes.
A alteração da ordem dos estratos do conhecimento, assim como a prevalência do ludismo, privilegiando a subjectividade na relação com o objecto de aprendizagem, no processo pedagógico leva a um pseudo-saber, porque o que se aprenderá não poderá estar fundamentado numa totalidade cognoscitiva. Em suma, aprender-se-ão, no máximo, juízos e conceitos que não estão ligados a uma totalidade integradora, perdendo assim a sua base de significação.
Ao passar ao segundo tópico na sua “Informação de orientação de cursos”, Kant esclarece finalmente o que entende por aquilo que actualmente se designa por “aprender a aprender”. Nada mais do que “aprender a pensar”. E o comprazimento espasmódico com o aparente paradoxo dissipa-se.
O que se aplica à Filosofia aplica-se a qualquer disciplina acerca dum saber arquitectonicamente constituído.
Toda a disciplina escolar deste tipo, encarada no seu conteúdo como sistemática de um saber prévio, é pois um sistema de conceitos elaborados dedutivamente. Mas qualquer ciência – permitimo-nos generalizar o que Kant diz da Filosofia – tem que ser tomada, no âmbito da actividade escolar, ou de aprendizagem, como matéria para nela se exercer o pensar autónomo.
Isto quer dizer também que, por exemplo, sem Filosofia escolar, sem ensino sistemático da Filosofia, não pode haver atitude filosófica.
Com isto rebate-se, confirmando na sua verdade, a objecção de Carlos Fiolhais a respeito da caricatura real da “nova escola”, de que não se podem transmitir atitudes, ou disposições e métodos, em abstracto sem objectos que as exijam. A organização mental, a problematização, a crítica implicam conhecimentos seguros sobre os quais se possa raciocinar; mas, inversa e simultâneamente, o desenvolvimento do raciocínio é uma condição necessária para a aquisição de novos conhecimentos. As operações interiorizadas pela experiência dos objectos constituem a base formal da determinações de novos factos. Parafraseando Kant, juízos sem fenómenos são vazios; fenómenos sem juízos são cegos.
Mas Kant diz mais: não são apenas os objectos que exigem as atitudes do sujeito perante eles – caso em que recairíamos numa passividade essencial do sujeito a respeito do objecto, como sucede no empirismo e no positivismo -: é o sujeito, para usar termos piagetianos, na sua actividade originariamente vital, e simultâneamente social, que assimila e acomoda os objectos nas suas operações cognitivas.
Quer dizer, se há conhecimentos há atitude. Mas para haver atitude, é preciso “aprender a aprender” ou a pensar, quer dizer a determinar factos na experiência e a ter um distanciamento crítico perante os procedimentos mentais e as crenças.
Não se aprende a aprender a aprendizagem – o que parece ser a interpretação que muitos pedagogos actuais dão do mote “aprender a aprender” -, nem mesmo os pedagogos aprendem a aprender qualquer coisa ou a ensinar sem matéria para o fazer. Se “aprender a aprender” tem sentido é na medida em que, pelo contrário, não se trata duma actividade no vazio mas numa experiência contínua que, pouco a pouco, por generalização e reflexão, destaca do complexo total de cada uma das aprendizagens singulares os procedimentos formais de conhecimento, de análise, síntese, indução simples ou probabilísta, dedução, analogia, etc..
“Aprender a aprender” é, em suma, o processo progressivamente generalizante e reflexivo de conhecimento de matérias visadas pelo sujeito, portanto ao mesmo tempo orientado para a abstracção e generalização do método de aprendizagem dessas mesmas matérias.
“Aprender a aprender” é adquirir ou, como se queira, tomar consciência de métodos, na prática duma aprendizagem concreta. E o método, criticamente reflectido, é a conduta do sujeito livre perante o mundo que o rodeia.
Assim, ao mesmo tempo que descobre o valor alimentar do peixe, apercebe-se da dificuldade de o apanhar com mãos nuas e acaba por ter de construir uma ferramenta (a cana) e um método (a técnica de pesca à linha). Está, pois, justificado o provérbio chinês: “Não lhe dês o peixe mas ensina-o a pescar”.
Escreve Kant a respeito da tarefa do aluno: «Em poucas palavras, ele não deve aprender pensamentos mas aprender a pensar; não se deve levá-lo mas guiá-lo, se se pretende que no futuro ele seja capaz de caminhar por si mesmo.»
«Ousa pensar por ti mesmo.», escreveu Kant em “O que são as Luzes”.

(Ou de como tanto os defensores quanto os detractores do eduquês continuam a laborar num erro, apesar do neologismo já estar em desuso: lutam, como Dom Quixote, contra uma coisa que não existe. Mas como é necessário um objecto contra o qual o seu conceito se deve medir e a sua polémica se justificar, é preciso construí-lo, mesmo que não exista. E, mesmo que já não se fale muito nisso, talvez seja porque infelizmente já se interiorizou e naturalizou, em especial nas disciplinas Humanísticas, que nas outras aparece mal embora já tenha deixado algumas mossas que se tentam em pânico corrigir, o relativismo pós-modernista do desinteresse subjectivista pela forma, pelo método, pela objectividade na aprendizagem, e mesmo pelos conteúdos, se acaso estes não saírem da cabeça dos alunos nos seus pequenos ensaios arbitrários e com pouco embasamento cultural.)
Carlos Fiolhais, no “blogue” De Rerum Natura (título que, pelas categorias positivistas implícitas – racionalismo idealista lógico-abstracto, a escolástica do nosso tempo -, que o norteiam, não deveria fazer-se apadrinhar pelo grande filósofo materialista Lucrécio), escreveu, vai para uns meses, um comentário encomiástico ao livro de E. D. Hirsch Jr., Cultural Literacy, citando um glossário, apresentado por este, dos temas maiores da dita corrente pedagógica contemporânea – aliás dividida em doutrinas que abraçam princípios muitas vezes opostos, como é o caso da pedagogia por objectivos fundada num comportamentalismo moderado (ironicamente mais próximo dos críticos do “eduquês”), e o condutismo ou construtivismo, pedagogia activa orientada – apesar dos seus limites teóricos – para o desenvolvimento integrado da personalidade, no seu carácter, sentimentos, pensamento crítico e conhecimentos, que só aparentam serem palavra vagas e mágicas porque não se prestam, como muitas vezes o positivismo exige, a meras definições categoriais mas designam aspectos dum processo à vez analítico e sintético – e sarcasticamente intitulada no nosso pequeno canto de “eduquês” (não sendo um conceito, não se refere objectivamente a nada).
Eis o glossário que, tal como foi exposto no comentário de Carlos Fiolhais, aparece descontextualizado das suas origens históricas e filosóficas, da sistemática teórica e da prática que lhe dá sentido:
«1.Concepção instrumental da educação:
“aprender a aprender”,
“aptidão para o pensamento crítico”,
“aptidões metacognitivas”,
“aprendizagem permanente”.
2.Desenvolvimentalismo romântico:
“aprendizagem ao ritmo dos alunos”,
“escola centrada na criança”,
“diferenças individuais dos alunos”,
“estilos individuais de aprendizagem”,
“inteligências múltiplas”,
“ensinar a criança e não a matéria”.
3.Pedagogia naturalista:
“construtivismo”,
“aprendizagem cooperativa”,
“aprendizagem por descoberta”,
“aprendizagem holística”,
“método de projecto”,
“aprendizagem temática”.
4.Antipatia ao ensino de conteúdos:
“os factos não contam tanto como a compreensão”,
“os factos ficam desactualizados”,
“menos é mais”,
“aprendizagem para a compreensão”.»
Carlos Fiolhais (de resto um cientista que respeito com toda a minha humildade dentro da área científica que domina como poucos, a física) sustenta, por exemplo – sendo esta uma tese central do chamado “eduquês” -, que “aprender a aprender” «é, em geral, apenas um jogo de palavras que inebria quem as profere. [...] Nesta concepção educativa, interessa mais o instrumento – a cana de pesca – do que propriamente o peixe. Quem diz isso é capaz de ficar horas perdidas sem pescar nada, não se importando nada com isso. De resto, que diz isso parte de um erro: que se pode separar o conhecimento factual da atitude para o adquirir. Como se poderão transmitir atitudes em abstracto sem objectos que as exijam?»
Totalmente de acordo com a última frase. Mas não estará Carlos Fiolhais a interpretar a expressão “aprender a aprender” distorcendo-lhe o sentido através da sua descontextualização das teorias e das práticas de ensino-aprendizagem que a tomam como lema, claro que não por má-fé mas por desconhecimento destas? Não estará, pelo menos, a ignorar a seriedade dos problemas que levanta ocultada pelos documentos e pelas práticas dos que, pelo contrário, a usam seja de maneira preguiçosa seja precisamente por má-fé e oportunismo político, estatístico e populista, sendo que este sim é um dos obstáculos principais – junto com a concepção pragmática, instrumental, operativa do saber – à educação que devemos ter?
Senão vejamos. A “escola nova”, na sua recepção mais primária mas com má-fé nas altas instâncias do poder educativo, de origem romântica mas instrumentalizada nas últimas décadas para a formação de jovens de carácter cegamente competitivo e com uma atitude utilitária para com o conhecimento e a realidade humana e natural – ou seja, para a educação dos jovens no empreendedorismo focado na acumulação de capital, na concorrência brutal entre empresas sem misericórdia para com os trabalhadores, portanto também associado à criatividade que isso impõe (quem não quer ter um telemóvel “touch screen”, que dá mais sensualidade à comunicação e sentido à vida?), assim como à cobiça, à vaidade, ao consumo desenfreado necessário à manutenção deste sistema económico -, a “escola nova”, dizia, é ideologicamente pedocêntrica (os direitos do homem estendem-se aos da criança simultâneamente à medida que se vai cumprindo a ética formal burguesa, universalizante ‘a priori’, e na medida em que se vai tornando um ser de consumo imprescindível para a acumulação capitalista), construindo-se a partir da noção de aprendizagem, subordinando a mundividência dos adultos à estrutura cognitiva, expectativas e motivações dos alunos, sem compreender – ou fazendo crer que o desconhece – que a estrutura cognitiva não se desenvolve por geração espontânea nem que as motivações das crianças e adolescentes são inatas mas constituem condutas mobilizadas pelos interesses do mundo adulto que as rodeia. É que até os jogos infantis foram de invenção adulta.
Os traços mais característicos da chamada “escola nova” é – abstraindo de tudo o que distingue as diversas escolas “novas” -: – horror ao método expositivo, considerado como violência mental, pois pretende impor o universo cognitivo e afectivo do professor ao universo incomensurável (melhor dizendo, aberto às sempre novas solicitações concorrenciais da sociedade civil) do aluno; – a escola deve ter a missão de formar personalidades (diga-se, caracteres competitivamente agressivos, embora civicamente respeitadores, porque é do interesse de todos que a sociedade pelo menos viva numa harmonia formal, de resto essencial) e não exclusivamente mentes.
A “escola nova” basear-se-á pois, num modelo de não-directividade, valorizando a eficácia, o êxito, a realização, numa perspectiva de criatividade associada ao lucro económico empresarial, ao sucesso militar, ao poder político, às artes, domesticadas pela sua institucionalização como objectos de prestígio, conduzindo a uma sociedade de estatutos sociais discriminados na forma duma méritocracia, que fez grande parte do sucesso da nação norte-americana, e a miséria de muitas outras.
Porém, o próprio modelo tradicional, directivo, magistral, sob a capa da racionalidade, já visava sobretudo objectivos pragmáticos, promovendo também a ideologia do sucesso.
Só que a escola magistral já não se aplica ao nosso tempo (parece indicá-lo o processo de Bolonha), para o qual não interessa saber muito – o porquê, o fundamento, o enquadramento sintético – mas saber onde ir buscá-lo e saber operacionalizá-lo especializadamente nos objectivos reprodutivo e criativo-concorrenciais – o objectivo competitivo e o como se pode alcançá-lo.
Muito mais se poderia dizer sobre a nova “escola nova”, tão apreciada pelos actuais poderes políticos e económicos. Não podendo desenvolver igualmente todos os tópicos correlatos e associados, procurarei esclarecer então o sentido histórico-filosófico e o verdadeiro significado da expressão “aprender a aprender”, injustamente maltratada quer pelos críticos quer pelos adeptos institucionais do “eduquês”.
Ela tem raízes inimaginavelmente antigas, socráticas e isocráticas, mas podemos começar com o grande filósofo alemão Immanuel Kant e com a sua “Informação acerca da orientação de cursos no semestre de Inverno de 1765-66″, que incidiu sobre dois tópicos: reflexão sobre a pedagogia em geral e reflexão sobre a didáctica da Filosofia.
O seu texto, como não podia deixar de ser, representa uma revolução coperniciana na pedagogia, fornecendo as bases filosóficas para uma escola nova, que nada tem, como veremos, da caricatura a que actualmente foi reduzida: o ensino-aprendizagem não deve girar em torno de saberes já constituídos e dogmáticos mas são os saberes que devem girar à volta do homem, como produtos das suas faculdades e portanto, no reconhecimento tanto do carácter determinante da actividade cognoscitiva do indivíduo como da ambição sistemática, necessária embora muitas vezes mal fundada, da razão humana, saberes susceptíveis de um trabalho de revisão crítica pelo esforço de assimilação prática, ética, estética e intelectual da experiência e da experimentação a que todo o ser humano pode sujeitar as coisas a fim de torná-las seus objectos. Assim, saber fazer uso do entendimento é para Kant, como escreveu em “O que são as Luzes”, ousá-lo contra todas as formas de tirania intelectual e moral, seja ela mundana seja dita transcendente.
A pedagogia de Kant não pode pois ser ignorada, por mais defeitos que presentemente se lhe possa apontar.
No que respeita a uma teoria geral da educação, Kant inscreve-se no contexto da pedagogia do século XVIII. É influenciado por Rousseau e sobretudo por Basedow, que introduz o jogo, o trabalho manual e a educação física no currículo escolar. Kant denuncia a posição paradigmática da pedagogia do século XVIII, que é a da ideia de que o estudo é necessariamente um esforço violento imposto, centrado no ensino ignorando as particularidades do processo de desenvolvimento infantil.
Todavia Kant também critica a Basedow um excessivo sensorialismo e emotivismo, assim como a demasiada importância conferida à ludicidade. O projecto kantiano valoriza a disciplina e o respeito pela ordem escolar, na medida em que ela consiste num instrumento de orientação dos alunos para o desenvolvimento sistemático, metódico, das suas aptidões e conhecimentos, considerando igualmente que as recompensas (behavioristas, diríamos agora), supostamente motivos básicos da acção numa perspectiva hedonista, tendem a mercantilizar a educação, no seu próprio seio, pervertendo o seu sentido e valor.
Na verdade, uma vez que a educação consiste numa transformação não-natural da criança e do adolescente, exigindo a mobilização da noção de dever, qualquer progresso – mesmo tendo que ser produto da actividade construtiva do aluno – obrigará a um esforço garantido pela disciplina e pelo respeito perante as regras pedagógicas instituídas.
Aliás, disciplina, esforço e espontaneidade na aprendizagem não são termos contraditórios, antes pelo contrário. Para Kant, a educação é o meio pelo qual o homem adquire a sua humanidade e, posto que ela sirva para o homem adquirir todas as suas virtualidades, deve torná-las actuais, realizadas. Ora, a realização de qualquer mudança obriga a um esforço, para o qual a ausência de inclinação natural, espontânea, para o conhecimento – ao invés do afirmado por Aristóteles -, se torna necessária a disciplina.
Kant preconiza um esquema progressivo na formação integral do homem, esquema que segue a génese do próprio conhecimento (a pedagogia não é mais do que a doutrina dos processos práticos de aquisição do conhecimento junta a uma ética e a um projecto), com as seguintes etapas: intuição, conceitos do entendimento, integração dos conceitos empíricos nos seus fundamentos, constituição da ciência mediante o encadeamento bem fundamentado dos juízos.
Há portanto, no projecto educativo da escola nova de Kant, um plano prévio e estratégico de estudos que não se coaduna ‘a priori’ de maneira harmoniosa com as inclinações espontâneas dos alunos e com os seus interesses imediatos, dispersos e incoerentes.
A alteração da ordem dos estratos do conhecimento, assim como a prevalência do ludismo, privilegiando a subjectividade na relação com o objecto de aprendizagem, no processo pedagógico leva a um pseudo-saber, porque o que se aprenderá não poderá estar fundamentado numa totalidade cognoscitiva. Em suma, aprender-se-ão, no máximo, juízos e conceitos que não estão ligados a uma totalidade integradora, perdendo assim a sua base de significação.
Ao passar ao segundo tópico na sua “Informação de orientação de cursos”, Kant esclarece finalmente o que entende por aquilo que actualmente se designa por “aprender a aprender”. Nada mais do que “aprender a pensar”. E o comprazimento espasmódico com o aparente paradoxo dissipa-se.
O que se aplica à Filosofia aplica-se a qualquer disciplina acerca dum saber arquitectonicamente constituído.
Toda a disciplina escolar deste tipo, encarada no seu conteúdo como sistemática de um saber prévio, é pois um sistema de conceitos elaborados dedutivamente. Mas qualquer ciência – permitimo-nos generalizar o que Kant diz da Filosofia – tem que ser tomada, no âmbito da actividade escolar, ou de aprendizagem, como matéria para nela se exercer o pensar autónomo.
Isto quer dizer também que, por exemplo, sem Filosofia escolar, sem ensino sistemático da Filosofia, não pode haver atitude filosófica.
Com isto rebate-se, confirmando na sua verdade, a objecção de Carlos Fiolhais a respeito da caricatura real da “nova escola”, de que não se podem transmitir atitudes, ou disposições e métodos, em abstracto sem objectos que as exijam. A organização mental, a problematização, a crítica implicam conhecimentos seguros sobre os quais se possa raciocinar; mas, inversa e simultâneamente, o desenvolvimento do raciocínio é uma condição necessária para a aquisição de novos conhecimentos. As operações interiorizadas pela experiência dos objectos constituem a base formal da determinações de novos factos. Parafraseando Kant, juízos sem fenómenos são vazios; fenómenos sem juízos são cegos.
Mas Kant diz mais: não são apenas os objectos que exigem as atitudes do sujeito perante eles – caso em que recairíamos numa passividade essencial do sujeito a respeito do objecto, como sucede no empirismo e no positivismo -: é o sujeito, para usar termos piagetianos, na sua actividade originariamente vital, e simultâneamente social, que assimila e acomoda os objectos nas suas operações cognitivas.
Quer dizer, se há conhecimentos há atitude. Mas para haver atitude, é preciso “aprender a aprender” ou a pensar, quer dizer a determinar factos na experiência e a ter um distanciamento crítico perante os procedimentos mentais e as crenças.
Não se aprende a aprender a aprendizagem – o que parece ser a interpretação que muitos pedagogos actuais dão do mote “aprender a aprender” -, nem mesmo os pedagogos aprendem a aprender qualquer coisa ou a ensinar sem matéria para o fazer. Se “aprender a aprender” tem sentido é na medida em que, pelo contrário, não se trata duma actividade no vazio mas numa experiência contínua que, pouco a pouco, por generalização e reflexão, destaca do complexo total de cada uma das aprendizagens singulares os procedimentos formais de conhecimento, de análise, síntese, indução simples ou probabilísta, dedução, analogia, etc..
“Aprender a aprender” é, em suma, o processo progressivamente generalizante e reflexivo de conhecimento de matérias visadas pelo sujeito, portanto ao mesmo tempo orientado para a abstracção e generalização do método de aprendizagem dessas mesmas matérias.
“Aprender a aprender” é adquirir ou, como se queira, tomar consciência de métodos, na prática duma aprendizagem concreta. E o método, criticamente reflectido, é a conduta do sujeito livre perante o mundo que o rodeia.
Assim, ao mesmo tempo que descobre o valor alimentar do peixe, apercebe-se da dificuldade de o apanhar com mãos nuas e acaba por ter de construir uma ferramenta (a cana) e um método (a técnica de pesca à linha). Está, pois, justificado o provérbio chinês: “Não lhe dês o peixe mas ensina-o a pescar”.
Escreve Kant a respeito da tarefa do aluno: «Em poucas palavras, ele não deve aprender pensamentos mas aprender a pensar; não se deve levá-lo mas guiá-lo, se se pretende que no futuro ele seja capaz de caminhar por si mesmo.»
«Ousa pensar por ti mesmo.», escreveu Kant em “O que são as Luzes”.

(Ou de como tanto os defensores quanto os detractores do eduquês continuam a laborar num erro, apesar do neologismo já estar em desuso: lutam, como Dom Quixote, contra uma coisa que não existe. Mas como é necessário um objecto contra o qual o seu conceito se deve medir e a sua polémica se justificar, é preciso construí-lo, mesmo que não exista. E, mesmo que já não se fale muito nisso, talvez seja porque infelizmente já se interiorizou e naturalizou, em especial nas disciplinas Humanísticas, que nas outras aparece mal embora já tenha deixado algumas mossas que se tentam em pânico corrigir, o relativismo pós-modernista do desinteresse subjectivista pela forma, pelo método, pela objectividade na aprendizagem, e mesmo pelos conteúdos, se acaso estes não saírem da cabeça dos alunos nos seus pequenos ensaios arbitrários e com pouco embasamento cultural.)
Carlos Fiolhais, no “blogue” De Rerum Natura (título que, pelas categorias positivistas implícitas – racionalismo idealista lógico-abstracto, a escolástica do nosso tempo -, que o norteiam, não deveria fazer-se apadrinhar pelo grande filósofo materialista Lucrécio), escreveu, vai para uns meses, um comentário encomiástico ao livro de E. D. Hirsch Jr., Cultural Literacy, citando um glossário, apresentado por este, dos temas maiores da dita corrente pedagógica contemporânea – aliás dividida em doutrinas que abraçam princípios muitas vezes opostos, como é o caso da pedagogia por objectivos fundada num comportamentalismo moderado (ironicamente mais próximo dos críticos do “eduquês”), e o condutismo ou construtivismo, pedagogia activa orientada – apesar dos seus limites teóricos – para o desenvolvimento integrado da personalidade, no seu carácter, sentimentos, pensamento crítico e conhecimentos, que só aparentam serem palavra vagas e mágicas porque não se prestam, como muitas vezes o positivismo exige, a meras definições categoriais mas designam aspectos dum processo à vez analítico e sintético – e sarcasticamente intitulada no nosso pequeno canto de “eduquês” (não sendo um conceito, não se refere objectivamente a nada).
Eis o glossário que, tal como foi exposto no comentário de Carlos Fiolhais, aparece descontextualizado das suas origens históricas e filosóficas, da sistemática teórica e da prática que lhe dá sentido:
«1.Concepção instrumental da educação:
“aprender a aprender”,
“aptidão para o pensamento crítico”,
“aptidões metacognitivas”,
“aprendizagem permanente”.
2.Desenvolvimentalismo romântico:
“aprendizagem ao ritmo dos alunos”,
“escola centrada na criança”,
“diferenças individuais dos alunos”,
“estilos individuais de aprendizagem”,
“inteligências múltiplas”,
“ensinar a criança e não a matéria”.
3.Pedagogia naturalista:
“construtivismo”,
“aprendizagem cooperativa”,
“aprendizagem por descoberta”,
“aprendizagem holística”,
“método de projecto”,
“aprendizagem temática”.
4.Antipatia ao ensino de conteúdos:
“os factos não contam tanto como a compreensão”,
“os factos ficam desactualizados”,
“menos é mais”,
“aprendizagem para a compreensão”.»
Carlos Fiolhais (de resto um cientista que respeito com toda a minha humildade dentro da área científica que domina como poucos, a física) sustenta, por exemplo – sendo esta uma tese central do chamado “eduquês” -, que “aprender a aprender” «é, em geral, apenas um jogo de palavras que inebria quem as profere. [...] Nesta concepção educativa, interessa mais o instrumento – a cana de pesca – do que propriamente o peixe. Quem diz isso é capaz de ficar horas perdidas sem pescar nada, não se importando nada com isso. De resto, que diz isso parte de um erro: que se pode separar o conhecimento factual da atitude para o adquirir. Como se poderão transmitir atitudes em abstracto sem objectos que as exijam?»
Totalmente de acordo com a última frase. Mas não estará Carlos Fiolhais a interpretar a expressão “aprender a aprender” distorcendo-lhe o sentido através da sua descontextualização das teorias e das práticas de ensino-aprendizagem que a tomam como lema, claro que não por má-fé mas por desconhecimento destas? Não estará, pelo menos, a ignorar a seriedade dos problemas que levanta ocultada pelos documentos e pelas práticas dos que, pelo contrário, a usam seja de maneira preguiçosa seja precisamente por má-fé e oportunismo político, estatístico e populista, sendo que este sim é um dos obstáculos principais – junto com a concepção pragmática, instrumental, operativa do saber – à educação que devemos ter?
Senão vejamos. A “escola nova”, na sua recepção mais primária mas com má-fé nas altas instâncias do poder educativo, de origem romântica mas instrumentalizada nas últimas décadas para a formação de jovens de carácter cegamente competitivo e com uma atitude utilitária para com o conhecimento e a realidade humana e natural – ou seja, para a educação dos jovens no empreendedorismo focado na acumulação de capital, na concorrência brutal entre empresas sem misericórdia para com os trabalhadores, portanto também associado à criatividade que isso impõe (quem não quer ter um telemóvel “touch screen”, que dá mais sensualidade à comunicação e sentido à vida?), assim como à cobiça, à vaidade, ao consumo desenfreado necessário à manutenção deste sistema económico -, a “escola nova”, dizia, é ideologicamente pedocêntrica (os direitos do homem estendem-se aos da criança simultâneamente à medida que se vai cumprindo a ética formal burguesa, universalizante ‘a priori’, e na medida em que se vai tornando um ser de consumo imprescindível para a acumulação capitalista), construindo-se a partir da noção de aprendizagem, subordinando a mundividência dos adultos à estrutura cognitiva, expectativas e motivações dos alunos, sem compreender – ou fazendo crer que o desconhece – que a estrutura cognitiva não se desenvolve por geração espontânea nem que as motivações das crianças e adolescentes são inatas mas constituem condutas mobilizadas pelos interesses do mundo adulto que as rodeia. É que até os jogos infantis foram de invenção adulta.
Os traços mais característicos da chamada “escola nova” é – abstraindo de tudo o que distingue as diversas escolas “novas” -: – horror ao método expositivo, considerado como violência mental, pois pretende impor o universo cognitivo e afectivo do professor ao universo incomensurável (melhor dizendo, aberto às sempre novas solicitações concorrenciais da sociedade civil) do aluno; – a escola deve ter a missão de formar personalidades (diga-se, caracteres competitivamente agressivos, embora civicamente respeitadores, porque é do interesse de todos que a sociedade pelo menos viva numa harmonia formal, de resto essencial) e não exclusivamente mentes.
A “escola nova” basear-se-á pois, num modelo de não-directividade, valorizando a eficácia, o êxito, a realização, numa perspectiva de criatividade associada ao lucro económico empresarial, ao sucesso militar, ao poder político, às artes, domesticadas pela sua institucionalização como objectos de prestígio, conduzindo a uma sociedade de estatutos sociais discriminados na forma duma méritocracia, que fez grande parte do sucesso da nação norte-americana, e a miséria de muitas outras.
Porém, o próprio modelo tradicional, directivo, magistral, sob a capa da racionalidade, já visava sobretudo objectivos pragmáticos, promovendo também a ideologia do sucesso.
Só que a escola magistral já não se aplica ao nosso tempo (parece indicá-lo o processo de Bolonha), para o qual não interessa saber muito – o porquê, o fundamento, o enquadramento sintético – mas saber onde ir buscá-lo e saber operacionalizá-lo especializadamente nos objectivos reprodutivo e criativo-concorrenciais – o objectivo competitivo e o como se pode alcançá-lo.
Muito mais se poderia dizer sobre a nova “escola nova”, tão apreciada pelos actuais poderes políticos e económicos. Não podendo desenvolver igualmente todos os tópicos correlatos e associados, procurarei esclarecer então o sentido histórico-filosófico e o verdadeiro significado da expressão “aprender a aprender”, injustamente maltratada quer pelos críticos quer pelos adeptos institucionais do “eduquês”.
Ela tem raízes inimaginavelmente antigas, socráticas e isocráticas, mas podemos começar com o grande filósofo alemão Immanuel Kant e com a sua “Informação acerca da orientação de cursos no semestre de Inverno de 1765-66″, que incidiu sobre dois tópicos: reflexão sobre a pedagogia em geral e reflexão sobre a didáctica da Filosofia.
O seu texto, como não podia deixar de ser, representa uma revolução coperniciana na pedagogia, fornecendo as bases filosóficas para uma escola nova, que nada tem, como veremos, da caricatura a que actualmente foi reduzida: o ensino-aprendizagem não deve girar em torno de saberes já constituídos e dogmáticos mas são os saberes que devem girar à volta do homem, como produtos das suas faculdades e portanto, no reconhecimento tanto do carácter determinante da actividade cognoscitiva do indivíduo como da ambição sistemática, necessária embora muitas vezes mal fundada, da razão humana, saberes susceptíveis de um trabalho de revisão crítica pelo esforço de assimilação prática, ética, estética e intelectual da experiência e da experimentação a que todo o ser humano pode sujeitar as coisas a fim de torná-las seus objectos. Assim, saber fazer uso do entendimento é para Kant, como escreveu em “O que são as Luzes”, ousá-lo contra todas as formas de tirania intelectual e moral, seja ela mundana seja dita transcendente.
A pedagogia de Kant não pode pois ser ignorada, por mais defeitos que presentemente se lhe possa apontar.
No que respeita a uma teoria geral da educação, Kant inscreve-se no contexto da pedagogia do século XVIII. É influenciado por Rousseau e sobretudo por Basedow, que introduz o jogo, o trabalho manual e a educação física no currículo escolar. Kant denuncia a posição paradigmática da pedagogia do século XVIII, que é a da ideia de que o estudo é necessariamente um esforço violento imposto, centrado no ensino ignorando as particularidades do processo de desenvolvimento infantil.
Todavia Kant também critica a Basedow um excessivo sensorialismo e emotivismo, assim como a demasiada importância conferida à ludicidade. O projecto kantiano valoriza a disciplina e o respeito pela ordem escolar, na medida em que ela consiste num instrumento de orientação dos alunos para o desenvolvimento sistemático, metódico, das suas aptidões e conhecimentos, considerando igualmente que as recompensas (behavioristas, diríamos agora), supostamente motivos básicos da acção numa perspectiva hedonista, tendem a mercantilizar a educação, no seu próprio seio, pervertendo o seu sentido e valor.
Na verdade, uma vez que a educação consiste numa transformação não-natural da criança e do adolescente, exigindo a mobilização da noção de dever, qualquer progresso – mesmo tendo que ser produto da actividade construtiva do aluno – obrigará a um esforço garantido pela disciplina e pelo respeito perante as regras pedagógicas instituídas.
Aliás, disciplina, esforço e espontaneidade na aprendizagem não são termos contraditórios, antes pelo contrário. Para Kant, a educação é o meio pelo qual o homem adquire a sua humanidade e, posto que ela sirva para o homem adquirir todas as suas virtualidades, deve torná-las actuais, realizadas. Ora, a realização de qualquer mudança obriga a um esforço, para o qual a ausência de inclinação natural, espontânea, para o conhecimento – ao invés do afirmado por Aristóteles -, se torna necessária a disciplina.
Kant preconiza um esquema progressivo na formação integral do homem, esquema que segue a génese do próprio conhecimento (a pedagogia não é mais do que a doutrina dos processos práticos de aquisição do conhecimento junta a uma ética e a um projecto), com as seguintes etapas: intuição, conceitos do entendimento, integração dos conceitos empíricos nos seus fundamentos, constituição da ciência mediante o encadeamento bem fundamentado dos juízos.
Há portanto, no projecto educativo da escola nova de Kant, um plano prévio e estratégico de estudos que não se coaduna ‘a priori’ de maneira harmoniosa com as inclinações espontâneas dos alunos e com os seus interesses imediatos, dispersos e incoerentes.
A alteração da ordem dos estratos do conhecimento, assim como a prevalência do ludismo, privilegiando a subjectividade na relação com o objecto de aprendizagem, no processo pedagógico leva a um pseudo-saber, porque o que se aprenderá não poderá estar fundamentado numa totalidade cognoscitiva. Em suma, aprender-se-ão, no máximo, juízos e conceitos que não estão ligados a uma totalidade integradora, perdendo assim a sua base de significação.
Ao passar ao segundo tópico na sua “Informação de orientação de cursos”, Kant esclarece finalmente o que entende por aquilo que actualmente se designa por “aprender a aprender”. Nada mais do que “aprender a pensar”. E o comprazimento espasmódico com o aparente paradoxo dissipa-se.
O que se aplica à Filosofia aplica-se a qualquer disciplina acerca dum saber arquitectonicamente constituído.
Toda a disciplina escolar deste tipo, encarada no seu conteúdo como sistemática de um saber prévio, é pois um sistema de conceitos elaborados dedutivamente. Mas qualquer ciência – permitimo-nos generalizar o que Kant diz da Filosofia – tem que ser tomada, no âmbito da actividade escolar, ou de aprendizagem, como matéria para nela se exercer o pensar autónomo.
Isto quer dizer também que, por exemplo, sem Filosofia escolar, sem ensino sistemático da Filosofia, não pode haver atitude filosófica.
Com isto rebate-se, confirmando na sua verdade, a objecção de Carlos Fiolhais a respeito da caricatura real da “nova escola”, de que não se podem transmitir atitudes, ou disposições e métodos, em abstracto sem objectos que as exijam. A organização mental, a problematização, a crítica implicam conhecimentos seguros sobre os quais se possa raciocinar; mas, inversa e simultâneamente, o desenvolvimento do raciocínio é uma condição necessária para a aquisição de novos conhecimentos. As operações interiorizadas pela experiência dos objectos constituem a base formal da determinações de novos factos. Parafraseando Kant, juízos sem fenómenos são vazios; fenómenos sem juízos são cegos.
Mas Kant diz mais: não são apenas os objectos que exigem as atitudes do sujeito perante eles – caso em que recairíamos numa passividade essencial do sujeito a respeito do objecto, como sucede no empirismo e no positivismo -: é o sujeito, para usar termos piagetianos, na sua actividade originariamente vital, e simultâneamente social, que assimila e acomoda os objectos nas suas operações cognitivas.
Quer dizer, se há conhecimentos há atitude. Mas para haver atitude, é preciso “aprender a aprender” ou a pensar, quer dizer a determinar factos na experiência e a ter um distanciamento crítico perante os procedimentos mentais e as crenças.
Não se aprende a aprender a aprendizagem – o que parece ser a interpretação que muitos pedagogos actuais dão do mote “aprender a aprender” -, nem mesmo os pedagogos aprendem a aprender qualquer coisa ou a ensinar sem matéria para o fazer. Se “aprender a aprender” tem sentido é na medida em que, pelo contrário, não se trata duma actividade no vazio mas numa experiência contínua que, pouco a pouco, por generalização e reflexão, destaca do complexo total de cada uma das aprendizagens singulares os procedimentos formais de conhecimento, de análise, síntese, indução simples ou probabilísta, dedução, analogia, etc..
“Aprender a aprender” é, em suma, o processo progressivamente generalizante e reflexivo de conhecimento de matérias visadas pelo sujeito, portanto ao mesmo tempo orientado para a abstracção e generalização do método de aprendizagem dessas mesmas matérias.
“Aprender a aprender” é adquirir ou, como se queira, tomar consciência de métodos, na prática duma aprendizagem concreta. E o método, criticamente reflectido, é a conduta do sujeito livre perante o mundo que o rodeia.
Assim, ao mesmo tempo que descobre o valor alimentar do peixe, apercebe-se da dificuldade de o apanhar com mãos nuas e acaba por ter de construir uma ferramenta (a cana) e um método (a técnica de pesca à linha). Está, pois, justificado o provérbio chinês: “Não lhe dês o peixe mas ensina-o a pescar”.
Escreve Kant a respeito da tarefa do aluno: «Em poucas palavras, ele não deve aprender pensamentos mas aprender a pensar; não se deve levá-lo mas guiá-lo, se se pretende que no futuro ele seja capaz de caminhar por si mesmo.»
«Ousa pensar por ti mesmo.», escreveu Kant em “O que são as Luzes”.

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A União Europeia e os Estados Unidos, há uns meses atrás, estavam a discutir um acordo sobre a legislação que permitirá a partilha de informação privada, sem necessidade de mandato judicial, dos cidadãos dos dois lados do Atlântico. Assim, passando a lei, não passa o homem. Se tentar entrar nos EUA e não lhe permitirem pôr os pés fora do aeroporto não se admire, foi porque o nosso governo, ou as empresas a operar na Europa, passaram para o Tio Sam informações como as transacções dos cartões de crédito, viagens ou os hábitos na net.
Mesmo informações mais sensíveis como a raça, religião, opiniões políticas e registos de saúde ou vida sexual podem ser partilhadas, desde que a legislação nacional garanta a suposta protecção dos dados. Curiosamente, o acordo não se preocupa em definir que medidas são essas, deixando o critério a cada Governo.
Passo a passo, e sempre em nome da eficácia no combate ao terrorismo, os governos nacionais estão a construir as bases para uma sociedade em que deixamos de ser cidadãos para passarmos a ser suspeitos até prova em contrário.Sempre em nome das melhores intenções, como é natural…Esta história já é bem conhecida desde há séculos. Claro que os motivos, os interesses, as classes mudam. Mas muda menos o procedimento – ou será a lei? – geral da alienação.
Em 1670 o “nosso” Espinosa publicou na Holanda – a família judaica tinha saído de Portugal devido à perseguição – o famoso e escandaloso Tratado Teológico-Político, no qual afirma expressamente que toda a lei imposta é mal suportada e que, para evitar a revolta, existem vários mecanismos sociais, nomeamente a religião positiva e de Estado, que convencem os homens a acreditar que agem por sua livre vontade, ao mesmo tempo que devem confiar num chefe que parece ter qualquer coisa mais do que humano. Do mesmo modo, o desejo comum de segurança é usado para convencer a maioria da necessidade do controlo de todos os actos e movimentos dos indivíduos, agora que os meios electrónicos e informáticos ajudam como grande olho de Deus, indivíduos que desse modo se predispõem a colaborar na sua auto-repressão. É assim que também aceitam pacientemente sacrifícios para saldarem as dívidas e o défice do Estado enquanto as grandes empresas, multinacionais e instituições financeiras crescem ao ponto de controlarem cada vez mais as políticas dos Estados e de todos nós, que somos cada vez mais indivíduos mas cada vez menos cidadãos.

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A União Europeia e os Estados Unidos, há uns meses atrás, estavam a discutir um acordo sobre a legislação que permitirá a partilha de informação privada, sem necessidade de mandato judicial, dos cidadãos dos dois lados do Atlântico. Assim, passando a lei, não passa o homem. Se tentar entrar nos EUA e não lhe permitirem pôr os pés fora do aeroporto não se admire, foi porque o nosso governo, ou as empresas a operar na Europa, passaram para o Tio Sam informações como as transacções dos cartões de crédito, viagens ou os hábitos na net.
Mesmo informações mais sensíveis como a raça, religião, opiniões políticas e registos de saúde ou vida sexual podem ser partilhadas, desde que a legislação nacional garanta a suposta protecção dos dados. Curiosamente, o acordo não se preocupa em definir que medidas são essas, deixando o critério a cada Governo.
Passo a passo, e sempre em nome da eficácia no combate ao terrorismo, os governos nacionais estão a construir as bases para uma sociedade em que deixamos de ser cidadãos para passarmos a ser suspeitos até prova em contrário.Sempre em nome das melhores intenções, como é natural…Esta história já é bem conhecida desde há séculos. Claro que os motivos, os interesses, as classes mudam. Mas muda menos o procedimento – ou será a lei? – geral da alienação.
Em 1670 o “nosso” Espinosa publicou na Holanda – a família judaica tinha saído de Portugal devido à perseguição – o famoso e escandaloso Tratado Teológico-Político, no qual afirma expressamente que toda a lei imposta é mal suportada e que, para evitar a revolta, existem vários mecanismos sociais, nomeamente a religião positiva e de Estado, que convencem os homens a acreditar que agem por sua livre vontade, ao mesmo tempo que devem confiar num chefe que parece ter qualquer coisa mais do que humano. Do mesmo modo, o desejo comum de segurança é usado para convencer a maioria da necessidade do controlo de todos os actos e movimentos dos indivíduos, agora que os meios electrónicos e informáticos ajudam como grande olho de Deus, indivíduos que desse modo se predispõem a colaborar na sua auto-repressão. É assim que também aceitam pacientemente sacrifícios para saldarem as dívidas e o défice do Estado enquanto as grandes empresas, multinacionais e instituições financeiras crescem ao ponto de controlarem cada vez mais as políticas dos Estados e de todos nós, que somos cada vez mais indivíduos mas cada vez menos cidadãos.

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A União Europeia e os Estados Unidos, há uns meses atrás, estavam a discutir um acordo sobre a legislação que permitirá a partilha de informação privada, sem necessidade de mandato judicial, dos cidadãos dos dois lados do Atlântico. Assim, passando a lei, não passa o homem. Se tentar entrar nos EUA e não lhe permitirem pôr os pés fora do aeroporto não se admire, foi porque o nosso governo, ou as empresas a operar na Europa, passaram para o Tio Sam informações como as transacções dos cartões de crédito, viagens ou os hábitos na net.
Mesmo informações mais sensíveis como a raça, religião, opiniões políticas e registos de saúde ou vida sexual podem ser partilhadas, desde que a legislação nacional garanta a suposta protecção dos dados. Curiosamente, o acordo não se preocupa em definir que medidas são essas, deixando o critério a cada Governo.
Passo a passo, e sempre em nome da eficácia no combate ao terrorismo, os governos nacionais estão a construir as bases para uma sociedade em que deixamos de ser cidadãos para passarmos a ser suspeitos até prova em contrário.Sempre em nome das melhores intenções, como é natural…Esta história já é bem conhecida desde há séculos. Claro que os motivos, os interesses, as classes mudam. Mas muda menos o procedimento – ou será a lei? – geral da alienação.
Em 1670 o “nosso” Espinosa publicou na Holanda – a família judaica tinha saído de Portugal devido à perseguição – o famoso e escandaloso Tratado Teológico-Político, no qual afirma expressamente que toda a lei imposta é mal suportada e que, para evitar a revolta, existem vários mecanismos sociais, nomeamente a religião positiva e de Estado, que convencem os homens a acreditar que agem por sua livre vontade, ao mesmo tempo que devem confiar num chefe que parece ter qualquer coisa mais do que humano. Do mesmo modo, o desejo comum de segurança é usado para convencer a maioria da necessidade do controlo de todos os actos e movimentos dos indivíduos, agora que os meios electrónicos e informáticos ajudam como grande olho de Deus, indivíduos que desse modo se predispõem a colaborar na sua auto-repressão. É assim que também aceitam pacientemente sacrifícios para saldarem as dívidas e o défice do Estado enquanto as grandes empresas, multinacionais e instituições financeiras crescem ao ponto de controlarem cada vez mais as políticas dos Estados e de todos nós, que somos cada vez mais indivíduos mas cada vez menos cidadãos.

Fenomenologia e Ídolos do Teatro


Há no filósofo Merleau-Ponty, tal como no pintor Cézanne, uma vontade de imanência sensível, de mundanidade, mas ao mesmo tempo, em contrapartida, a tendência para uma nova forma de espiritualização do corpo, o corpo como vidente e auto-visível que se revê, não manipulado de fora, para além de toda a razão constrangedora, na originariedade duma Natureza muda, não submetida ainda às categorias da morfologia moral e económica nem à sintaxe de um universo de coisas que o homem tem por função manter. Descobre-se, pois, neles a nostalgia duma Natureza ainda intocada pelo utilitarismo da civilização, que fez do homem um seu instrumento e o terá afastado de tudo aquilo que ele é “antes da reflexão”, do “berço das significações”.
É evidente que não se trata ainda de explicar a realidade, de penetrar nas suas leis através da transformação social e experimental e da “observação razoada e seguida”, como dizia Buffon no Prefácio da sua Histoire Naturelle de 1749, mas de a interpretar em função do desejo, no seu caso duma bela nostalgia, a qual, porém, se apresenta como uma maneira de contrapor a uma razão estreita – tornada “utensílio” de exploração humana e de guerra, portanto, segundo nós, razão irracional e não ciência mas manipulação ideológica e política das conquistas da Física, da Biologia, da Psicologia – uma significação humanista do conhecimento, obtida por um retorno espiritual à identidade originária, nascente e correlacionadora, do homem com a Natureza, da qual aqueles saberes operacionais teriam surgido e para a qual teriam de se manter virados.
Escreve, pois, Merleau-Ponty que a Fenomenologia
«É o ensaio duma descrição directa da nossa experiência tal qual é, não dizendo respeito à sua génese psicológica e às explicações causais [...]»,
para mais à frente enunciar, num registo “quase” egotista, a tese radical da sua filosofia, que se destina a descrever o mundo percebido e não a dar uma explicação da percepção do mundo, explicação que é já uma relação segunda, esquematizadora e instrumental, com esse mundo, e não a experiência vivida:
«Eu não sou um “ser vivo” ou mesmo um “homem”, ou mesmo “uma consciência”, com todos os caracteres que a zoologia, a anatomia social ou a psicologia indutiva reconhecem a esses produtos da natureza ou da história – eu sou a fonte absoluta, a minha existência não vem dos meus antecedentes, do meu ambiente físico e social; ela vai para eles e sustenta-os, porque sou eu que faz ser para mim (e portanto “ser” no único sentido que a palavra possa ter para mim) essa tradição que escolho retomar, esse horizonte cuja distância em relação a mim se cavaria, pois que a fonte absoluta não lhe pertence como uma propriedade, se não estivesse lá para a percorrer pelo olhar.»
Em suma, para a Fenomenologia de Merleau-Ponty, que vê no conhecimento um obstáculo à experiência da verdade das coisas ou das coisas de verdade,
«Voltar às coisas mesmas é regressar a esse mundo anterior ao conhecimento e de que o conhecimento sempre fala, e a respeito do qual toda a determinação científica é abstracta, significativa e dependente, tal como a geografia a propósito da paisagem em que aprendemos antes de tudo o que é uma floresta, uma pradaria ou uma ribeira.»
Demos aqui um exemplo da ambivalência da metafísica: por um lado denunciadora e problematizadora e, por outro, mistificadora e dada com facilidade ao irracionalismo.
Por isso, precisamos de desvalorizar o suposto alcance gnosiológico não só da vetusta mas persistente atitude escolástica como das aventuras contemporâneas da pura especulação, ainda que tenham partido duma crítica da ciência.
Mas a ciência, enquanto tal, não pode ser criticada do exterior, se a entendermos como obra aberta, pelos seus próprios princípios e métodos, que incluem a consideração ponderada das interpretações especulativas e o uso das mais extravagantes hipóteses, sujeitas ao escrutínio da experiência, apoiada nos recursos técnicos e teóricos disponíveis, ou, no limite, à espera do aperfeiçoamento dialéctico dos meios.
Concerteza – já o dissemos – que não devemos desqualificar por completo a especulação, como o faz o positivismo radical, pois esta pode ser estimulante e levar mesmo a investigação a reorientar-se por vias fecundas até então insuspeitas e à exigência de criar novos métodos e instrumentos de prova. Não existem critérios ‘a priori’ que definam se um problema é científico ou não. Todavia, é a ciência, enquanto processo de racionalização dos problemas da existência humana e das possibilidades da sua solução – sempre imperfeita e insatisfeita consigo mesma –, que tem a última e provisória palavra no âmbito do conhecimento.
Repare-se, contudo, que, se a ciência é a “senhora” do saber, é também a servidora dos sonhos e necessidades de realização dos homens e depende, em interacção, para singrar, do seu poder, prático e ideológico, sobre o mundo que se vai modificando.
Mas ela também está, de algum modo, sempre enredada pelas mitologias do seu tempo, confundindo-se muitas vezes com a sua racionalização. Por isso, é preciso um esforço filosófico-científico de distinção entre o racional e o racionalizante em cada proposta científica que surge quase sempre envolta, para os espíritos mais simples, por uma aura de verdade cumulativa, assim como um trabalho de desmistificação dos irracionalismos – intuicionismos, intencionalismos, identidades ontológicas ambíguas – que se apoiam em parte nessa ingenuidade para confundirem a ciência com uma mera tecnologia de manipulação da realidade.
A mundividência de Merleau-Ponty fornece, porém, argumentos fortes para a distinção de Jean Piaget entre ciência e filosofia, que vão em sentido diferente da oposição irracionalista daquele autor. Escreve Piaget em Lógica e Conhecimento Científico, Vol. I:
«A característica própria do conhecimento científico é a de conseguir uma certa objectividade, no sentido de que mediante o emprego de certos métodos, quer dedutivos (lógico-matemáticos), quer experimentais, há finalmente acordo entre todos os sujeitos sobre um determinado sector de conhecimentos.»,
procedendo de seguida à sua diferenciação do pensamento filosófico:
«Um sistema filosófico, em troca, tende a fornecer a totalidade da experiência vivida, o que é bastante legítimo mas põe um problema bem diferente, que é talvez menos um problema de conhecimento do que de atitude geral e de vida. Assim, ele reflectirá, mais cedo o mais tarde, a personalidade do seu autor, bem como a ideologia do seu grupo social, de que esta personalidade é solidária. Além dos elementos do conhecimento objectivo, no sentido há pouco esboçado, comportará portanto necessariamente juízos de valor traduzindo o comprometimento do eu na sua sociedade e no seu universo. Em suma, tendendo a abraçar um conteúdo mais rico que o conhecimento científico, perderá correlativamente em objectividade, [...]»
Sendo assim, a filosofia não deve ser encarada de um ponto-de-vista meramente negativo. Ela exprime, ao mais alto nível da reflexão, as preocupações éticas, os problemas gnoseológicos e ontológicos, os graves comprometimentos axiológicos do homem investido, à vez, numa certa situação, época, cultura e classe.
É devido a esta complexa interferência recíproca de aspectos objectivos que todas as eras são lugares de confronto de metafísicas contraditórias, assim como de percepções opostas do seu mundo.
Os artistas elevaram tais percepções ao nível da representação transfigurada da vida, com os seus medos e esperanças, fantasmas e encantamentos, glorificando ou denunciando o seu tempo.
Os filósofos vêem na arte um sinal do indivíduo criador na sucessão dos aqui e agora que lhe cabem, e interpretam, à medida do convívio com os temores e desejos próprios, as obras de arte como palcos do seu enredo pessoal e social.
Tanto os artistas quanto os filósofos não fogem de si mesmos ao “refazerem” nos seus produtos a realidade e ao interpretarem-se mutuamente: pelo contrário, exprimem, mesmo indirectamente, reprimindo-as sublimando, as relações objectivas (costumes, obrigações, ideologias, necessidades económicas e biológicas) de que dependem e a actividade subjectiva pessoal (ideias, sentimentos, desejos, projectos) condicionada pelo curso mais ou menos sistemático dos acontecimentos exteriores.
O segredo da filosofia não é, portanto, ou todavia, o do sentido das coisas. O sentido objectivo da relação do homem com as coisas é que é o segredo da filosofia. Mas é um sentido que a filosofia não está em condições de disponibilizar de forma consciente, pois ela, exercida por intelectuais que têm por material de trabalho, meio de subsistência e de reconhecimento, a linguagem natural, procura o fundamento da existência humana, ou a sua essência, na própria linguagem, na sua semântica e sintaxe reificadas, a qual, na verdade, comunica e oculta simultâneamente as condições de vida. O homem não subsiste com palavras nem se alegra com tristezas.
Já Francis Bacon, no Novum Organum (1620) denunciava, como “Ídolos do Foro”, o atractivo mágico da linguagem, não só para o metafísico como para o comum dos mortais, atractivo de que Cézanne decidiu fugir, ainda que não se tivesse conseguido calar, orientando-nos, com isso, nos mistérios do que deveria ser uma relação perceptiva directa:
«as palavras podem virar e reflectir o seu poder contra o entendimento, efeito esse que tornou sofísticas e inactivas as ciências e a filosofia. É que as palavras são frequentemente impostas a partir da apreensão do homem comum e dissecam as coisas segundo as linhas mais perceptíveis ao entendimento comum. O que acontece é que quando um entendimento mais penetrante, uma observação mais atenta pretende deslocar essas linhas, a fim de as tornar mais conformes à natureza, as palavras [quais “primeiro-motor”, “destino”, “elementos substanciais”, “pesado” ou “leve”] opõem-se a esse intento com grande alarido.»
O sábio, Procurador Geral, Ministro da Justiça, Chanceler do rei Jaime I, põe-nos igualmente de sobreaviso, talvez por experiência própria, contra os enredos teóricos e as falácias pseudo-demonstrativas, que, ambos, ligando as palavras umas às outras, concluem pelo ponto donde a vontade humana partiu. Juiz em causa própria, nada pode provar, mas satisfaz a auto-estima e convence quem aceita tais regras do jogo sem saber de que se trata dum jogo viciado.
Advertindo de tais ilusões, denominadas por ele de “Ídolos do Teatro”, escreve:
«As fábulas deste tipo de teatro têm isso em comum com aquilo que é usual no teatro dos poetas: as narrações imaginadas para a cena são mais harmoniosas, mais elegantes e mais conformes àquilo que pretendemos que elas sejam do que as narrações verídicas extraídas da História.»

Fenomenologia e Ídolos do Teatro


Há no filósofo Merleau-Ponty, tal como no pintor Cézanne, uma vontade de imanência sensível, de mundanidade, mas ao mesmo tempo, em contrapartida, a tendência para uma nova forma de espiritualização do corpo, o corpo como vidente e auto-visível que se revê, não manipulado de fora, para além de toda a razão constrangedora, na originariedade duma Natureza muda, não submetida ainda às categorias da morfologia moral e económica nem à sintaxe de um universo de coisas que o homem tem por função manter. Descobre-se, pois, neles a nostalgia duma Natureza ainda intocada pelo utilitarismo da civilização, que fez do homem um seu instrumento e o terá afastado de tudo aquilo que ele é “antes da reflexão”, do “berço das significações”.
É evidente que não se trata ainda de explicar a realidade, de penetrar nas suas leis através da transformação social e experimental e da “observação razoada e seguida”, como dizia Buffon no Prefácio da sua Histoire Naturelle de 1749, mas de a interpretar em função do desejo, no seu caso duma bela nostalgia, a qual, porém, se apresenta como uma maneira de contrapor a uma razão estreita – tornada “utensílio” de exploração humana e de guerra, portanto, segundo nós, razão irracional e não ciência mas manipulação ideológica e política das conquistas da Física, da Biologia, da Psicologia – uma significação humanista do conhecimento, obtida por um retorno espiritual à identidade originária, nascente e correlacionadora, do homem com a Natureza, da qual aqueles saberes operacionais teriam surgido e para a qual teriam de se manter virados.
Escreve, pois, Merleau-Ponty que a Fenomenologia
«É o ensaio duma descrição directa da nossa experiência tal qual é, não dizendo respeito à sua génese psicológica e às explicações causais [...]»,
para mais à frente enunciar, num registo “quase” egotista, a tese radical da sua filosofia, que se destina a descrever o mundo percebido e não a dar uma explicação da percepção do mundo, explicação que é já uma relação segunda, esquematizadora e instrumental, com esse mundo, e não a experiência vivida:
«Eu não sou um “ser vivo” ou mesmo um “homem”, ou mesmo “uma consciência”, com todos os caracteres que a zoologia, a anatomia social ou a psicologia indutiva reconhecem a esses produtos da natureza ou da história – eu sou a fonte absoluta, a minha existência não vem dos meus antecedentes, do meu ambiente físico e social; ela vai para eles e sustenta-os, porque sou eu que faz ser para mim (e portanto “ser” no único sentido que a palavra possa ter para mim) essa tradição que escolho retomar, esse horizonte cuja distância em relação a mim se cavaria, pois que a fonte absoluta não lhe pertence como uma propriedade, se não estivesse lá para a percorrer pelo olhar.»
Em suma, para a Fenomenologia de Merleau-Ponty, que vê no conhecimento um obstáculo à experiência da verdade das coisas ou das coisas de verdade,
«Voltar às coisas mesmas é regressar a esse mundo anterior ao conhecimento e de que o conhecimento sempre fala, e a respeito do qual toda a determinação científica é abstracta, significativa e dependente, tal como a geografia a propósito da paisagem em que aprendemos antes de tudo o que é uma floresta, uma pradaria ou uma ribeira.»
Demos aqui um exemplo da ambivalência da metafísica: por um lado denunciadora e problematizadora e, por outro, mistificadora e dada com facilidade ao irracionalismo.
Por isso, precisamos de desvalorizar o suposto alcance gnosiológico não só da vetusta mas persistente atitude escolástica como das aventuras contemporâneas da pura especulação, ainda que tenham partido duma crítica da ciência.
Mas a ciência, enquanto tal, não pode ser criticada do exterior, se a entendermos como obra aberta, pelos seus próprios princípios e métodos, que incluem a consideração ponderada das interpretações especulativas e o uso das mais extravagantes hipóteses, sujeitas ao escrutínio da experiência, apoiada nos recursos técnicos e teóricos disponíveis, ou, no limite, à espera do aperfeiçoamento dialéctico dos meios.
Concerteza – já o dissemos – que não devemos desqualificar por completo a especulação, como o faz o positivismo radical, pois esta pode ser estimulante e levar mesmo a investigação a reorientar-se por vias fecundas até então insuspeitas e à exigência de criar novos métodos e instrumentos de prova. Não existem critérios ‘a priori’ que definam se um problema é científico ou não. Todavia, é a ciência, enquanto processo de racionalização dos problemas da existência humana e das possibilidades da sua solução – sempre imperfeita e insatisfeita consigo mesma –, que tem a última e provisória palavra no âmbito do conhecimento.
Repare-se, contudo, que, se a ciência é a “senhora” do saber, é também a servidora dos sonhos e necessidades de realização dos homens e depende, em interacção, para singrar, do seu poder, prático e ideológico, sobre o mundo que se vai modificando.
Mas ela também está, de algum modo, sempre enredada pelas mitologias do seu tempo, confundindo-se muitas vezes com a sua racionalização. Por isso, é preciso um esforço filosófico-científico de distinção entre o racional e o racionalizante em cada proposta científica que surge quase sempre envolta, para os espíritos mais simples, por uma aura de verdade cumulativa, assim como um trabalho de desmistificação dos irracionalismos – intuicionismos, intencionalismos, identidades ontológicas ambíguas – que se apoiam em parte nessa ingenuidade para confundirem a ciência com uma mera tecnologia de manipulação da realidade.
A mundividência de Merleau-Ponty fornece, porém, argumentos fortes para a distinção de Jean Piaget entre ciência e filosofia, que vão em sentido diferente da oposição irracionalista daquele autor. Escreve Piaget em Lógica e Conhecimento Científico, Vol. I:
«A característica própria do conhecimento científico é a de conseguir uma certa objectividade, no sentido de que mediante o emprego de certos métodos, quer dedutivos (lógico-matemáticos), quer experimentais, há finalmente acordo entre todos os sujeitos sobre um determinado sector de conhecimentos.»,
procedendo de seguida à sua diferenciação do pensamento filosófico:
«Um sistema filosófico, em troca, tende a fornecer a totalidade da experiência vivida, o que é bastante legítimo mas põe um problema bem diferente, que é talvez menos um problema de conhecimento do que de atitude geral e de vida. Assim, ele reflectirá, mais cedo o mais tarde, a personalidade do seu autor, bem como a ideologia do seu grupo social, de que esta personalidade é solidária. Além dos elementos do conhecimento objectivo, no sentido há pouco esboçado, comportará portanto necessariamente juízos de valor traduzindo o comprometimento do eu na sua sociedade e no seu universo. Em suma, tendendo a abraçar um conteúdo mais rico que o conhecimento científico, perderá correlativamente em objectividade, [...]»
Sendo assim, a filosofia não deve ser encarada de um ponto-de-vista meramente negativo. Ela exprime, ao mais alto nível da reflexão, as preocupações éticas, os problemas gnoseológicos e ontológicos, os graves comprometimentos axiológicos do homem investido, à vez, numa certa situação, época, cultura e classe.
É devido a esta complexa interferência recíproca de aspectos objectivos que todas as eras são lugares de confronto de metafísicas contraditórias, assim como de percepções opostas do seu mundo.
Os artistas elevaram tais percepções ao nível da representação transfigurada da vida, com os seus medos e esperanças, fantasmas e encantamentos, glorificando ou denunciando o seu tempo.
Os filósofos vêem na arte um sinal do indivíduo criador na sucessão dos aqui e agora que lhe cabem, e interpretam, à medida do convívio com os temores e desejos próprios, as obras de arte como palcos do seu enredo pessoal e social.
Tanto os artistas quanto os filósofos não fogem de si mesmos ao “refazerem” nos seus produtos a realidade e ao interpretarem-se mutuamente: pelo contrário, exprimem, mesmo indirectamente, reprimindo-as sublimando, as relações objectivas (costumes, obrigações, ideologias, necessidades económicas e biológicas) de que dependem e a actividade subjectiva pessoal (ideias, sentimentos, desejos, projectos) condicionada pelo curso mais ou menos sistemático dos acontecimentos exteriores.
O segredo da filosofia não é, portanto, ou todavia, o do sentido das coisas. O sentido objectivo da relação do homem com as coisas é que é o segredo da filosofia. Mas é um sentido que a filosofia não está em condições de disponibilizar de forma consciente, pois ela, exercida por intelectuais que têm por material de trabalho, meio de subsistência e de reconhecimento, a linguagem natural, procura o fundamento da existência humana, ou a sua essência, na própria linguagem, na sua semântica e sintaxe reificadas, a qual, na verdade, comunica e oculta simultâneamente as condições de vida. O homem não subsiste com palavras nem se alegra com tristezas.
Já Francis Bacon, no Novum Organum (1620) denunciava, como “Ídolos do Foro”, o atractivo mágico da linguagem, não só para o metafísico como para o comum dos mortais, atractivo de que Cézanne decidiu fugir, ainda que não se tivesse conseguido calar, orientando-nos, com isso, nos mistérios do que deveria ser uma relação perceptiva directa:
«as palavras podem virar e reflectir o seu poder contra o entendimento, efeito esse que tornou sofísticas e inactivas as ciências e a filosofia. É que as palavras são frequentemente impostas a partir da apreensão do homem comum e dissecam as coisas segundo as linhas mais perceptíveis ao entendimento comum. O que acontece é que quando um entendimento mais penetrante, uma observação mais atenta pretende deslocar essas linhas, a fim de as tornar mais conformes à natureza, as palavras [quais “primeiro-motor”, “destino”, “elementos substanciais”, “pesado” ou “leve”] opõem-se a esse intento com grande alarido.»
O sábio, Procurador Geral, Ministro da Justiça, Chanceler do rei Jaime I, põe-nos igualmente de sobreaviso, talvez por experiência própria, contra os enredos teóricos e as falácias pseudo-demonstrativas, que, ambos, ligando as palavras umas às outras, concluem pelo ponto donde a vontade humana partiu. Juiz em causa própria, nada pode provar, mas satisfaz a auto-estima e convence quem aceita tais regras do jogo sem saber de que se trata dum jogo viciado.
Advertindo de tais ilusões, denominadas por ele de “Ídolos do Teatro”, escreve:
«As fábulas deste tipo de teatro têm isso em comum com aquilo que é usual no teatro dos poetas: as narrações imaginadas para a cena são mais harmoniosas, mais elegantes e mais conformes àquilo que pretendemos que elas sejam do que as narrações verídicas extraídas da História.»

Fenomenologia e Ídolos do Teatro


Há no filósofo Merleau-Ponty, tal como no pintor Cézanne, uma vontade de imanência sensível, de mundanidade, mas ao mesmo tempo, em contrapartida, a tendência para uma nova forma de espiritualização do corpo, o corpo como vidente e auto-visível que se revê, não manipulado de fora, para além de toda a razão constrangedora, na originariedade duma Natureza muda, não submetida ainda às categorias da morfologia moral e económica nem à sintaxe de um universo de coisas que o homem tem por função manter. Descobre-se, pois, neles a nostalgia duma Natureza ainda intocada pelo utilitarismo da civilização, que fez do homem um seu instrumento e o terá afastado de tudo aquilo que ele é “antes da reflexão”, do “berço das significações”.
É evidente que não se trata ainda de explicar a realidade, de penetrar nas suas leis através da transformação social e experimental e da “observação razoada e seguida”, como dizia Buffon no Prefácio da sua Histoire Naturelle de 1749, mas de a interpretar em função do desejo, no seu caso duma bela nostalgia, a qual, porém, se apresenta como uma maneira de contrapor a uma razão estreita – tornada “utensílio” de exploração humana e de guerra, portanto, segundo nós, razão irracional e não ciência mas manipulação ideológica e política das conquistas da Física, da Biologia, da Psicologia – uma significação humanista do conhecimento, obtida por um retorno espiritual à identidade originária, nascente e correlacionadora, do homem com a Natureza, da qual aqueles saberes operacionais teriam surgido e para a qual teriam de se manter virados.
Escreve, pois, Merleau-Ponty que a Fenomenologia
«É o ensaio duma descrição directa da nossa experiência tal qual é, não dizendo respeito à sua génese psicológica e às explicações causais [...]»,
para mais à frente enunciar, num registo “quase” egotista, a tese radical da sua filosofia, que se destina a descrever o mundo percebido e não a dar uma explicação da percepção do mundo, explicação que é já uma relação segunda, esquematizadora e instrumental, com esse mundo, e não a experiência vivida:
«Eu não sou um “ser vivo” ou mesmo um “homem”, ou mesmo “uma consciência”, com todos os caracteres que a zoologia, a anatomia social ou a psicologia indutiva reconhecem a esses produtos da natureza ou da história – eu sou a fonte absoluta, a minha existência não vem dos meus antecedentes, do meu ambiente físico e social; ela vai para eles e sustenta-os, porque sou eu que faz ser para mim (e portanto “ser” no único sentido que a palavra possa ter para mim) essa tradição que escolho retomar, esse horizonte cuja distância em relação a mim se cavaria, pois que a fonte absoluta não lhe pertence como uma propriedade, se não estivesse lá para a percorrer pelo olhar.»
Em suma, para a Fenomenologia de Merleau-Ponty, que vê no conhecimento um obstáculo à experiência da verdade das coisas ou das coisas de verdade,
«Voltar às coisas mesmas é regressar a esse mundo anterior ao conhecimento e de que o conhecimento sempre fala, e a respeito do qual toda a determinação científica é abstracta, significativa e dependente, tal como a geografia a propósito da paisagem em que aprendemos antes de tudo o que é uma floresta, uma pradaria ou uma ribeira.»
Demos aqui um exemplo da ambivalência da metafísica: por um lado denunciadora e problematizadora e, por outro, mistificadora e dada com facilidade ao irracionalismo.
Por isso, precisamos de desvalorizar o suposto alcance gnosiológico não só da vetusta mas persistente atitude escolástica como das aventuras contemporâneas da pura especulação, ainda que tenham partido duma crítica da ciência.
Mas a ciência, enquanto tal, não pode ser criticada do exterior, se a entendermos como obra aberta, pelos seus próprios princípios e métodos, que incluem a consideração ponderada das interpretações especulativas e o uso das mais extravagantes hipóteses, sujeitas ao escrutínio da experiência, apoiada nos recursos técnicos e teóricos disponíveis, ou, no limite, à espera do aperfeiçoamento dialéctico dos meios.
Concerteza – já o dissemos – que não devemos desqualificar por completo a especulação, como o faz o positivismo radical, pois esta pode ser estimulante e levar mesmo a investigação a reorientar-se por vias fecundas até então insuspeitas e à exigência de criar novos métodos e instrumentos de prova. Não existem critérios ‘a priori’ que definam se um problema é científico ou não. Todavia, é a ciência, enquanto processo de racionalização dos problemas da existência humana e das possibilidades da sua solução – sempre imperfeita e insatisfeita consigo mesma –, que tem a última e provisória palavra no âmbito do conhecimento.
Repare-se, contudo, que, se a ciência é a “senhora” do saber, é também a servidora dos sonhos e necessidades de realização dos homens e depende, em interacção, para singrar, do seu poder, prático e ideológico, sobre o mundo que se vai modificando.
Mas ela também está, de algum modo, sempre enredada pelas mitologias do seu tempo, confundindo-se muitas vezes com a sua racionalização. Por isso, é preciso um esforço filosófico-científico de distinção entre o racional e o racionalizante em cada proposta científica que surge quase sempre envolta, para os espíritos mais simples, por uma aura de verdade cumulativa, assim como um trabalho de desmistificação dos irracionalismos – intuicionismos, intencionalismos, identidades ontológicas ambíguas – que se apoiam em parte nessa ingenuidade para confundirem a ciência com uma mera tecnologia de manipulação da realidade.
A mundividência de Merleau-Ponty fornece, porém, argumentos fortes para a distinção de Jean Piaget entre ciência e filosofia, que vão em sentido diferente da oposição irracionalista daquele autor. Escreve Piaget em Lógica e Conhecimento Científico, Vol. I:
«A característica própria do conhecimento científico é a de conseguir uma certa objectividade, no sentido de que mediante o emprego de certos métodos, quer dedutivos (lógico-matemáticos), quer experimentais, há finalmente acordo entre todos os sujeitos sobre um determinado sector de conhecimentos.»,
procedendo de seguida à sua diferenciação do pensamento filosófico:
«Um sistema filosófico, em troca, tende a fornecer a totalidade da experiência vivida, o que é bastante legítimo mas põe um problema bem diferente, que é talvez menos um problema de conhecimento do que de atitude geral e de vida. Assim, ele reflectirá, mais cedo o mais tarde, a personalidade do seu autor, bem como a ideologia do seu grupo social, de que esta personalidade é solidária. Além dos elementos do conhecimento objectivo, no sentido há pouco esboçado, comportará portanto necessariamente juízos de valor traduzindo o comprometimento do eu na sua sociedade e no seu universo. Em suma, tendendo a abraçar um conteúdo mais rico que o conhecimento científico, perderá correlativamente em objectividade, [...]»
Sendo assim, a filosofia não deve ser encarada de um ponto-de-vista meramente negativo. Ela exprime, ao mais alto nível da reflexão, as preocupações éticas, os problemas gnoseológicos e ontológicos, os graves comprometimentos axiológicos do homem investido, à vez, numa certa situação, época, cultura e classe.
É devido a esta complexa interferência recíproca de aspectos objectivos que todas as eras são lugares de confronto de metafísicas contraditórias, assim como de percepções opostas do seu mundo.
Os artistas elevaram tais percepções ao nível da representação transfigurada da vida, com os seus medos e esperanças, fantasmas e encantamentos, glorificando ou denunciando o seu tempo.
Os filósofos vêem na arte um sinal do indivíduo criador na sucessão dos aqui e agora que lhe cabem, e interpretam, à medida do convívio com os temores e desejos próprios, as obras de arte como palcos do seu enredo pessoal e social.
Tanto os artistas quanto os filósofos não fogem de si mesmos ao “refazerem” nos seus produtos a realidade e ao interpretarem-se mutuamente: pelo contrário, exprimem, mesmo indirectamente, reprimindo-as sublimando, as relações objectivas (costumes, obrigações, ideologias, necessidades económicas e biológicas) de que dependem e a actividade subjectiva pessoal (ideias, sentimentos, desejos, projectos) condicionada pelo curso mais ou menos sistemático dos acontecimentos exteriores.
O segredo da filosofia não é, portanto, ou todavia, o do sentido das coisas. O sentido objectivo da relação do homem com as coisas é que é o segredo da filosofia. Mas é um sentido que a filosofia não está em condições de disponibilizar de forma consciente, pois ela, exercida por intelectuais que têm por material de trabalho, meio de subsistência e de reconhecimento, a linguagem natural, procura o fundamento da existência humana, ou a sua essência, na própria linguagem, na sua semântica e sintaxe reificadas, a qual, na verdade, comunica e oculta simultâneamente as condições de vida. O homem não subsiste com palavras nem se alegra com tristezas.
Já Francis Bacon, no Novum Organum (1620) denunciava, como “Ídolos do Foro”, o atractivo mágico da linguagem, não só para o metafísico como para o comum dos mortais, atractivo de que Cézanne decidiu fugir, ainda que não se tivesse conseguido calar, orientando-nos, com isso, nos mistérios do que deveria ser uma relação perceptiva directa:
«as palavras podem virar e reflectir o seu poder contra o entendimento, efeito esse que tornou sofísticas e inactivas as ciências e a filosofia. É que as palavras são frequentemente impostas a partir da apreensão do homem comum e dissecam as coisas segundo as linhas mais perceptíveis ao entendimento comum. O que acontece é que quando um entendimento mais penetrante, uma observação mais atenta pretende deslocar essas linhas, a fim de as tornar mais conformes à natureza, as palavras [quais “primeiro-motor”, “destino”, “elementos substanciais”, “pesado” ou “leve”] opõem-se a esse intento com grande alarido.»
O sábio, Procurador Geral, Ministro da Justiça, Chanceler do rei Jaime I, põe-nos igualmente de sobreaviso, talvez por experiência própria, contra os enredos teóricos e as falácias pseudo-demonstrativas, que, ambos, ligando as palavras umas às outras, concluem pelo ponto donde a vontade humana partiu. Juiz em causa própria, nada pode provar, mas satisfaz a auto-estima e convence quem aceita tais regras do jogo sem saber de que se trata dum jogo viciado.
Advertindo de tais ilusões, denominadas por ele de “Ídolos do Teatro”, escreve:
«As fábulas deste tipo de teatro têm isso em comum com aquilo que é usual no teatro dos poetas: as narrações imaginadas para a cena são mais harmoniosas, mais elegantes e mais conformes àquilo que pretendemos que elas sejam do que as narrações verídicas extraídas da História.»

A Razão e o Último Avatar do Misticismo - 1



A mundividência de Merleau-Ponty fornece argumentos fortes para a distinção de Jean Piaget entre ciência e filosofia, que vão em sentido diferente da oposição irracionalista daquele autor. Escreve Piaget em Lógica e Conhecimento Científico, Vol. I:«A característica própria do conhecimento científico é a de conseguir uma certa objectividade, no sentido de que mediante o emprego de certos métodos, quer dedutivos (lógico-matemáticos), quer experimentais, há finalmente acordo entre todos os sujeitos sobre um determinado sector de conhecimentos.»,[1]
procedendo de seguida à sua diferenciação do pensamento filosófico:
«Um sistema filosófico, em troca, tende a fornecer a totalidade da experiência vivida, o que é bastante legítimo mas põe um problema bem diferente, que é talvez menos um problema de conhecimento do que de atitude geral e de vida. Assim, ele reflectirá, mais cedo o mais tarde, a personalidade do seu autor, bem como a ideologia do seu grupo social, de que esta personalidade é solidária. Além dos elementos do conhecimento objectivo, no sentido há pouco esboçado, comportará portanto necessariamente juízos de valor traduzindo o comprometimento do eu na sua sociedade e no seu universo. Em suma, tendendo a abraçar um conteúdo mais rico que o conhecimento científico, perderá correlativamente em objectividade, [...]»[2]
Sendo assim, a filosofia não deve ser encarada de um ponto-de-vista meramente negativo. Ela exprime, ao mais alto nível da reflexão, as preocupações éticas, os problemas gnoseológicos e ontológicos, os graves comprometimentos axiológicos do homem investido, à vez, numa certa situação, época, cultura e classe.
É devido a esta complexa interferência recíproca de aspectos objectivos que todas as eras são lugares de confronto de metafísicas contraditórias, assim como de percepções opostas do seu mundo.
Os artistas elevaram tais percepções ao nível da representação transfigurada da vida, com os seus medos e esperanças, fantasmas e encantamentos, glorificando ou denunciando o seu tempo.
Os filósofos vêem na arte um sinal do indivíduo criador na sucessão dos aqui e agora que lhe cabem, e interpretam, à medida do convívio com os temores e desejos próprios, as obras de arte como palcos do seu enredo pessoal e social.
Tanto os artistas quanto os filósofos não fogem de si mesmos ao “refazerem” nos seus produtos a realidade e ao interpretarem-se mutuamente: pelo contrário, exprimem, mesmo indirectamente, reprimindo-as sublimando, as relações objectivas (costumes, obrigações, ideologias, necessidades económicas e biológicas) de que dependem e a actividade subjectiva pessoal (ideias, sentimentos, desejos, projectos) condicionada pelo curso mais ou menos sistemático dos acontecimentos exteriores.
O segredo da filosofia não é, portanto, ou todavia, o do sentido das coisas. O sentido objectivo da relação do homem com as coisas é que é o segredo da filosofia. Mas é um sentido que a filosofia não está em condições de disponibilizar de forma consciente, pois ela, exercida por intelectuais que têm por material de trabalho, meio de subsistência e de reconhecimento, a linguagem natural,[3] procura o fundamento da existência humana, ou a sua essência, na própria linguagem, na sua semântica e sintaxe reificadas,[4] a qual, na verdade, comunica e oculta simultaneamente as condições de vida. O homem não subsiste com palavras nem se alegra com tristezas.
Já Francis Bacon, no Novum Organum (1620) denunciava, como “Ídolos do Foro”, o atractivo mágico da linguagem, não só para o metafísico como para o comum dos mortais, atractivo de que Cézanne decidiu fugir, ainda que não se tivesse conseguido calar, orientando-nos, com isso, nos mistérios do que deveria ser uma relação perceptiva directa:
«as palavras podem virar e reflectir o seu poder contra o entendimento, efeito esse que tornou sofisticas e inactivas as ciências e a filosofia. É que as palavras são frequentemente impostas a partir da apreensão do homem comum e dissecam as coisas segundo as linhas mais perceptíveis ao entendimento comum. O que acontece é que quando um entendimento mais penetrante, uma observação mais atenta pretende deslocar essas linhas, a fim de as tornar mais conformes à natureza, as palavras [quais “primeiro-motor”, “destino”, “elementos substanciais”, “pesado” ou “leve”] opõem-se a esse intento com grande alarido.»[5]
O sábio, Procurador Geral, Ministro da Justiça, Chanceler do rei Jaime I, põe-nos igualmente de sobreaviso, talvez por experiência própria, contra os enredos teóricos e as falácias pseudo-demonstrativas, que, ambos, ligando as palavras umas às outras, concluem pelo ponto donde a vontade humana partiu. Juiz em causa própria, nada pode provar, mas satisfaz a auto-estima e convence quem aceita tais regras do jogo sem saber de que se trata dum jogo viciado.
Advertindo de tais ilusões, denominadas por ele de “Ídolos do Teatro”, escreve:
«As fábulas deste tipo de teatro têm isso em comum com aquilo que é usual no teatro dos poetas: as narrações imaginadas para a cena são mais harmoniosas, mais elegantes e mais conformes àquilo que pretendemos que elas sejam do que as narrações verídicas extraídas da História.»[6]
Em suma, Francis Bacon afirmava no século XVII, muito antes do aparecimento dos Ideólogos (séc. XIX), que as ilusões não são só fábulas inventadas mas expressão da própria natureza humana, tornando possível conhecê-la melhor:
«Os Ídolos da Tribo têm o seu fundamento na própria natureza humana, na raça, na espécie humana. [...] O entendimento humano assemelha-se a um espelho imperfeito que, exposto aos raios das coisas, mistura a sua própria natureza com a natureza das coisas, falseando-as e distorcendo-as.»[7]
O reconhecimento desta inversão do sentido ser-pensar permite[8]compreender a filosofia, já não como elucidação do ser, mas como sintoma de um estado de coisas no universo humano, revalorizando-a enquanto facto resultante do desenvolvimento dos processos objectivos de existência, que leva ao surgir do trabalho espiritual abstracto, o qual contribui para determinar cada estádio social como uma específica, rica e contraditória actividade retroactiva entre as forças e relações produtivas, a organização política, as formas espirituais objectivas e hipostasiadas da moral, do direito e da religião, reguladoras do comportamento, estádio cuja cúpula, nas sociedades democráticas, além da ciência e da arte, é constituída pela filosofia, a qual, reificação das reificações, tende a inverter todo o processo social.
Se ela julga a dor como causa da doença, o sofrimento espiritual como patologia do espírito puro, cabe ao cientista verificar que distúrbios objectivos estão na base dos padecimentos metafísicos.[9]
Exemplifiquemos. Marx, em A Sagrada Família, comenta jocosamente a crítica indignada do neo-hegeliano Edgar Bauer a um livro do comissário da polícia Béraud em Paris sobre a prostituição tratada como um problema de ordem pública. Embora as “mulheres da rua”, assim como os bordéis e as(os) amantes, sejam um efeito das necessidades humanas insatisfeitas pela estrutura da família numa dada ordem social, Bauer julga a prostituição como resultado do “sofrimento do Amor”, mostrando apenas com isso a importância e o facto, não explicado, da perversão, numa certa sociedade, do amor enquanto necessidade humana, demasiado humana para ele, além do facto subjectivo de auto-repressão por sublimação filosófica.[10]
Primeiro Marx cita um estrato patético do texto de Edgar Bauer:
«O amor… é um deus cruel que, como todas as divindades, quer possuir o homem inteiro e só tem descanso quando o homem lhe tiver sacrificado não só a alma mas ainda o seu Eu físico. O culto do amor é o sofrimento, e o apogeu deste culto é o sacrifício de si mesmo, o suicídio.»[11]
Depois, mostra o processo pelo qual o amor é sublimado por Bauer, mas não à maneira kantiana, que dessa maneira poderia ter evitado as variadas desilusões da paixão, entre as quais elegeu o sacrifício, em vez de outras estratégias possíveis, designadamente a pseudodesmistificação mitológica dos encantos do sexo, satirizada por Jonathan Swift na descoberta do personagem Cassino de que as belas formas femininas também evacuam:[12]
«O Sr. Edgar faz do amor “um deus”, e ainda por cima “um deus cruel”, substituindo ao homem que ama, ao amor do homem, o homem do amor, destacando do homem o “Amor”, do qual faz um ser particular e a quem confere uma existência independente. Por este simples processo, por esta metamorfose do atributo em sujeito, pode-se criticamente transformar todas as determinações essenciais do homem em monstros e alienações do ser.»[13]
Portanto, ao exprimir através das palavras as questões da subsistência, da vontade de persistir, da realização humana, da infelicidade, da auto-estima, da convivência e da natureza das coisas, interpretando o mundo à medida das suas frustrações, contentamento ou conformismo, o filósofo, zangado o mais das vezes com a resistência da objectividade, numa linguagem cujo esoterismo constitui uma riqueza que é sua propriedade (por suposto vedada às forças sociais, acessível apenas aos bons livros) e também a porta de acesso à “verdade”, faz corresponder, de forma mediata, por não se distinguir real mas apenas idealmente[14] do mundo real, as provações dos mais elevados ou mais considerados valores humanos às próprias condições de vida.
Hipótese a reconsiderar será a de que é a própria realidade social a inverter-se objectivamente: ao alienar o homem, ou no facto do homem se alienar a si mesmo na criação da sociedade, a sociedade converte o “amor” num poder estranho diante do homem, que o eleva a um estatuto mitológico ou metafísico, a um deus ou a uma ideia.
O “amor” torna-se num ideal dificilmente alcançável e uma entidade abstracta que “é” por si, fazendo do homem um seu predicado e de si próprio uma essência humana situada acima do homem. Portanto, o homem pode, a partir de então, viver para o “amor”, assim como para a “natureza”, para a “liberdade”, para a “economia”, para “Deus”, produzindo e alcandorando as categorias metafísicas a fim terminal da existência humana.
É possível que resida nesse processo grande parte da “verdade” da filosofia e da arte.
E, no entanto, do mesmo modo que não se pode deduzir a Revolução Francesa da Fenomenologia do Espírito de Hegel, também o regime da IIIª República não é explicável a partir das pinturas de Cézanne, relativamente independentes das relações de produção e das estruturas sociais objectivas.
Não modelando nem reflectindo a época de maneira directa, as filosofias e as artes constituem uma tradução, mediante as suas formas expressivas (semânticas e perceptivas), da experiência de vida, pertencendo-lhe como um elemento que a permite elucidar melhor – até por via das suas oposições.
Além do mais, as grandes obras, sobretudo as artísticas, não se ficam por aí, manifestando uma certa continuidade de aspectos da vida humana durante as transformações históricas que os condicionam, habilitando a que elas renasçam integradas no espírito duma nova era, adquirindo o sentido e o valor que o contexto modificado torna possível.
Assevera Theodore Oïzerman:
«A filosofia (assim como as artes e a herança cultural) conserva um maior ou menor valor para além da época de que foi a emanação; é isso que cria a ilusão, no caso de uma tentativa idealista, da sua independência em relação à sua época. Mas esta ilusão desaparece desde que comecemos a analisar o conteúdo social, o alcance cognitivo e também a conexão histórica das épocas, no campo do progresso da sociedade.»[15]
O mesmo autor enuncia um princípio, baseado numa determinada concepção do mundo, que se pretende sociológico mas que pode ser alargado, ‘mutatis mutandis’, ao tópico da percepção na psicologia da arte, o qual não pode, de facto, separar-se – segundo a nossa tese – das condições sociais vividas pelos indivíduos, nomeadamente os artistas, nem da especificidade, também de certo modo condicionada, do processo estético. Esse princípio é, na expressão de Oïzerman
«o imperativo categórico da sociologia marxista, a saber: a partir das percepções, das ideias relativas às coisas, voltar às próprias coisas, para conhecer por meio da análise científica as relações reais para elucidar o mecanismo do seu reflexo na consciência humana, substituir essas imagens deformadas da realidade por um sistema de conceitos científicos.»[16]
Isso não quer dizer que a filosofia e, em especial, a arte sejam substituíveis na sua existência real e social.
Oïzerman refere-se sobretudo à filosofia, da qual quer extrair o significado verdadeiro dado no contexto da época, por exemplo o sentido burguês da concepção “utilitarista” da felicidade humana nos philosophes do século XVIII, aumentando assim a compreensão tanto dos progressos e conflitos daquela sociedade quanto da sua filosofia.
É do mesmo modo claro que a arte também deforma a realidade, e, no entanto, deforma-a para melhor tentar entender, sentir e recriar a existência, mas, neste caso, a sua substituição teórica é impossível.
A arte é um produto social material que, portanto, não pode sublimar-se em conceitos.[17] É, todavia, analisável por estes, na função de conhecerem os motivos dos seus produtos e os mecanismos da sua recepção, de preferência quando se compreende que a deformação artística da realidade é uma projecção da vivência de agentes da e condicionados pela mesma realidade, reflectindo portanto um fenómeno social real.
[1] PIAGET, J., Lógica e Conhecimento Científico, I, trad. Sousa Dias do original Logique et Connaissance Scientifique, Gallimard, Paris, 1967, Livraria Civilização Editora, Porto, 1980, p. 25.
[2] Idem, Op. Cit., p. 26.
[3] O que, reconheça-se, não é exclusivo dos filósofos. Em boa verdade, todos os homens compreendem o mundo mediante a linguagem, mas só os filósofos fazem dela, sobretudo das suas significações hipostasiadas, ou a realidade em si ou a fronteira que separa o homem não sabem bem de quê.
[4] Desde a escolástica à filosofia analítica.
[5] BACON, F., Novum Organum, Livro I, § 59, trad. António Magalhães, Rés-Editora, Porto, s/d, p. 43, do original latino estabelecido por J. Spelding, R. Ellis e D. D. Heath em The Works of Francis Bacon, Vol. I, Ed. Friedrich Fromman, Gunther Holzboog Verlag, Stuttgard-Bad, 1963.
[6] Idem, Op. Cit., Livro I, § 62, p. 46.
[7] Idem, Op. Cit., Livro I, § 41, p. 35.
[8] Ou vai permitir mais tarde, a partir do século XIX.
[9] Entendemos aqui por “filosofia” só a que é metafísica, virando as costas à ciência ou tentando fundamentá-la por princípios transcendentes ou transcendentais.
[10] Chegando a exclamar que “o amado não interessa ao seu amante senão na medida em que é um objecto exterior”, um pouco à maneira do psicanalista Jacques Lacan que numa aula da Sorbonne proferiu a ideia de que “não existe relação sexual”.
[11] BAUER, E., “Hurenverhältnisse”, in MARX ENGELS, Die Heilige Familie, in MEW, Band 2, P. 21, pela trad. port. de Fiama Hasse Pais Brandão, Editorial Presença, Lisboa, 1974 p. 30.
[12] Cf. SWIFT, J., “Cassino e Pedro – Elegia Trágica” (1733). Se Cassino fosse filósofo, provavelmente teria aceite a advertência de Aristóteles contra a desmesurada paixão: «O sábio não procura alcançar o prazer mas evitar a dor.» (ARISTÓTELES, Ethique, ed. russa, S. Petersburg, 1908, p. 12, cit., Théodore Oïzermann, Problemas de História da Filosofia, trad. Antonieta Azevedo, Livros Horizonte, Lisboa, 1976, p. 25, da ed. fr., Editions du Progrès, 1973). Apesar deste prenúncio estóico, Aristóteles inclinava-se contudo para um entendimento mais equilibrado do Bem, manifestando-se de acordo com o dístico por si citado, e inscrito, apolineamente, em Delos de que «“A Justiça é a mais nobre, e a saúde o melhor, / Mas o desejo do coração é o mais agradável.”» (Idem, Nicomachean Ethics, I, viii, 14-15, trad. H. Rackham, ed. bilingue, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1994, p. 43). Aristóteles procurou unir no Bem a Felicidade e a Justiça. Para ele o “fim político”, a justiça na acção social, era o “bem supremo”; Cézanne vivia numa sociedade em que o indivíduo civil estava separado do cidadão e o cidadão separado do homem: via nela uma impostura e desejava encontrar a felicidade e a justiça para o homem na unidade com a Natureza, que não era para ele um retorno mas a demonstração estética de que a verdade humana é pré-política, o lugar em que a necessidade encontra a sua liberdade.
[13] MARX, K., Op. Cit., Band 2, p. 21, trad. port. p. 31.
[14] Por transposição na esfera das Ideias e das idealizações e não na efectividade.
[15] OÏZERMAN, T., Op. Cit., p. 283.
[16] Idem, Op. Cit., p. 292.
[17] Para grande pesar de Hegel.

A Razão e o Último Avatar do Misticismo - 1



A mundividência de Merleau-Ponty fornece argumentos fortes para a distinção de Jean Piaget entre ciência e filosofia, que vão em sentido diferente da oposição irracionalista daquele autor. Escreve Piaget em Lógica e Conhecimento Científico, Vol. I:«A característica própria do conhecimento científico é a de conseguir uma certa objectividade, no sentido de que mediante o emprego de certos métodos, quer dedutivos (lógico-matemáticos), quer experimentais, há finalmente acordo entre todos os sujeitos sobre um determinado sector de conhecimentos.»,[1]
procedendo de seguida à sua diferenciação do pensamento filosófico:
«Um sistema filosófico, em troca, tende a fornecer a totalidade da experiência vivida, o que é bastante legítimo mas põe um problema bem diferente, que é talvez menos um problema de conhecimento do que de atitude geral e de vida. Assim, ele reflectirá, mais cedo o mais tarde, a personalidade do seu autor, bem como a ideologia do seu grupo social, de que esta personalidade é solidária. Além dos elementos do conhecimento objectivo, no sentido há pouco esboçado, comportará portanto necessariamente juízos de valor traduzindo o comprometimento do eu na sua sociedade e no seu universo. Em suma, tendendo a abraçar um conteúdo mais rico que o conhecimento científico, perderá correlativamente em objectividade, [...]»[2]
Sendo assim, a filosofia não deve ser encarada de um ponto-de-vista meramente negativo. Ela exprime, ao mais alto nível da reflexão, as preocupações éticas, os problemas gnoseológicos e ontológicos, os graves comprometimentos axiológicos do homem investido, à vez, numa certa situação, época, cultura e classe.
É devido a esta complexa interferência recíproca de aspectos objectivos que todas as eras são lugares de confronto de metafísicas contraditórias, assim como de percepções opostas do seu mundo.
Os artistas elevaram tais percepções ao nível da representação transfigurada da vida, com os seus medos e esperanças, fantasmas e encantamentos, glorificando ou denunciando o seu tempo.
Os filósofos vêem na arte um sinal do indivíduo criador na sucessão dos aqui e agora que lhe cabem, e interpretam, à medida do convívio com os temores e desejos próprios, as obras de arte como palcos do seu enredo pessoal e social.
Tanto os artistas quanto os filósofos não fogem de si mesmos ao “refazerem” nos seus produtos a realidade e ao interpretarem-se mutuamente: pelo contrário, exprimem, mesmo indirectamente, reprimindo-as sublimando, as relações objectivas (costumes, obrigações, ideologias, necessidades económicas e biológicas) de que dependem e a actividade subjectiva pessoal (ideias, sentimentos, desejos, projectos) condicionada pelo curso mais ou menos sistemático dos acontecimentos exteriores.
O segredo da filosofia não é, portanto, ou todavia, o do sentido das coisas. O sentido objectivo da relação do homem com as coisas é que é o segredo da filosofia. Mas é um sentido que a filosofia não está em condições de disponibilizar de forma consciente, pois ela, exercida por intelectuais que têm por material de trabalho, meio de subsistência e de reconhecimento, a linguagem natural,[3] procura o fundamento da existência humana, ou a sua essência, na própria linguagem, na sua semântica e sintaxe reificadas,[4] a qual, na verdade, comunica e oculta simultaneamente as condições de vida. O homem não subsiste com palavras nem se alegra com tristezas.
Já Francis Bacon, no Novum Organum (1620) denunciava, como “Ídolos do Foro”, o atractivo mágico da linguagem, não só para o metafísico como para o comum dos mortais, atractivo de que Cézanne decidiu fugir, ainda que não se tivesse conseguido calar, orientando-nos, com isso, nos mistérios do que deveria ser uma relação perceptiva directa:
«as palavras podem virar e reflectir o seu poder contra o entendimento, efeito esse que tornou sofisticas e inactivas as ciências e a filosofia. É que as palavras são frequentemente impostas a partir da apreensão do homem comum e dissecam as coisas segundo as linhas mais perceptíveis ao entendimento comum. O que acontece é que quando um entendimento mais penetrante, uma observação mais atenta pretende deslocar essas linhas, a fim de as tornar mais conformes à natureza, as palavras [quais “primeiro-motor”, “destino”, “elementos substanciais”, “pesado” ou “leve”] opõem-se a esse intento com grande alarido.»[5]
O sábio, Procurador Geral, Ministro da Justiça, Chanceler do rei Jaime I, põe-nos igualmente de sobreaviso, talvez por experiência própria, contra os enredos teóricos e as falácias pseudo-demonstrativas, que, ambos, ligando as palavras umas às outras, concluem pelo ponto donde a vontade humana partiu. Juiz em causa própria, nada pode provar, mas satisfaz a auto-estima e convence quem aceita tais regras do jogo sem saber de que se trata dum jogo viciado.
Advertindo de tais ilusões, denominadas por ele de “Ídolos do Teatro”, escreve:
«As fábulas deste tipo de teatro têm isso em comum com aquilo que é usual no teatro dos poetas: as narrações imaginadas para a cena são mais harmoniosas, mais elegantes e mais conformes àquilo que pretendemos que elas sejam do que as narrações verídicas extraídas da História.»[6]
Em suma, Francis Bacon afirmava no século XVII, muito antes do aparecimento dos Ideólogos (séc. XIX), que as ilusões não são só fábulas inventadas mas expressão da própria natureza humana, tornando possível conhecê-la melhor:
«Os Ídolos da Tribo têm o seu fundamento na própria natureza humana, na raça, na espécie humana. [...] O entendimento humano assemelha-se a um espelho imperfeito que, exposto aos raios das coisas, mistura a sua própria natureza com a natureza das coisas, falseando-as e distorcendo-as.»[7]
O reconhecimento desta inversão do sentido ser-pensar permite[8]compreender a filosofia, já não como elucidação do ser, mas como sintoma de um estado de coisas no universo humano, revalorizando-a enquanto facto resultante do desenvolvimento dos processos objectivos de existência, que leva ao surgir do trabalho espiritual abstracto, o qual contribui para determinar cada estádio social como uma específica, rica e contraditória actividade retroactiva entre as forças e relações produtivas, a organização política, as formas espirituais objectivas e hipostasiadas da moral, do direito e da religião, reguladoras do comportamento, estádio cuja cúpula, nas sociedades democráticas, além da ciência e da arte, é constituída pela filosofia, a qual, reificação das reificações, tende a inverter todo o processo social.
Se ela julga a dor como causa da doença, o sofrimento espiritual como patologia do espírito puro, cabe ao cientista verificar que distúrbios objectivos estão na base dos padecimentos metafísicos.[9]
Exemplifiquemos. Marx, em A Sagrada Família, comenta jocosamente a crítica indignada do neo-hegeliano Edgar Bauer a um livro do comissário da polícia Béraud em Paris sobre a prostituição tratada como um problema de ordem pública. Embora as “mulheres da rua”, assim como os bordéis e as(os) amantes, sejam um efeito das necessidades humanas insatisfeitas pela estrutura da família numa dada ordem social, Bauer julga a prostituição como resultado do “sofrimento do Amor”, mostrando apenas com isso a importância e o facto, não explicado, da perversão, numa certa sociedade, do amor enquanto necessidade humana, demasiado humana para ele, além do facto subjectivo de auto-repressão por sublimação filosófica.[10]
Primeiro Marx cita um estrato patético do texto de Edgar Bauer:
«O amor… é um deus cruel que, como todas as divindades, quer possuir o homem inteiro e só tem descanso quando o homem lhe tiver sacrificado não só a alma mas ainda o seu Eu físico. O culto do amor é o sofrimento, e o apogeu deste culto é o sacrifício de si mesmo, o suicídio.»[11]
Depois, mostra o processo pelo qual o amor é sublimado por Bauer, mas não à maneira kantiana, que dessa maneira poderia ter evitado as variadas desilusões da paixão, entre as quais elegeu o sacrifício, em vez de outras estratégias possíveis, designadamente a pseudodesmistificação mitológica dos encantos do sexo, satirizada por Jonathan Swift na descoberta do personagem Cassino de que as belas formas femininas também evacuam:[12]
«O Sr. Edgar faz do amor “um deus”, e ainda por cima “um deus cruel”, substituindo ao homem que ama, ao amor do homem, o homem do amor, destacando do homem o “Amor”, do qual faz um ser particular e a quem confere uma existência independente. Por este simples processo, por esta metamorfose do atributo em sujeito, pode-se criticamente transformar todas as determinações essenciais do homem em monstros e alienações do ser.»[13]
Portanto, ao exprimir através das palavras as questões da subsistência, da vontade de persistir, da realização humana, da infelicidade, da auto-estima, da convivência e da natureza das coisas, interpretando o mundo à medida das suas frustrações, contentamento ou conformismo, o filósofo, zangado o mais das vezes com a resistência da objectividade, numa linguagem cujo esoterismo constitui uma riqueza que é sua propriedade (por suposto vedada às forças sociais, acessível apenas aos bons livros) e também a porta de acesso à “verdade”, faz corresponder, de forma mediata, por não se distinguir real mas apenas idealmente[14] do mundo real, as provações dos mais elevados ou mais considerados valores humanos às próprias condições de vida.
Hipótese a reconsiderar será a de que é a própria realidade social a inverter-se objectivamente: ao alienar o homem, ou no facto do homem se alienar a si mesmo na criação da sociedade, a sociedade converte o “amor” num poder estranho diante do homem, que o eleva a um estatuto mitológico ou metafísico, a um deus ou a uma ideia.
O “amor” torna-se num ideal dificilmente alcançável e uma entidade abstracta que “é” por si, fazendo do homem um seu predicado e de si próprio uma essência humana situada acima do homem. Portanto, o homem pode, a partir de então, viver para o “amor”, assim como para a “natureza”, para a “liberdade”, para a “economia”, para “Deus”, produzindo e alcandorando as categorias metafísicas a fim terminal da existência humana.
É possível que resida nesse processo grande parte da “verdade” da filosofia e da arte.
E, no entanto, do mesmo modo que não se pode deduzir a Revolução Francesa da Fenomenologia do Espírito de Hegel, também o regime da IIIª República não é explicável a partir das pinturas de Cézanne, relativamente independentes das relações de produção e das estruturas sociais objectivas.
Não modelando nem reflectindo a época de maneira directa, as filosofias e as artes constituem uma tradução, mediante as suas formas expressivas (semânticas e perceptivas), da experiência de vida, pertencendo-lhe como um elemento que a permite elucidar melhor – até por via das suas oposições.
Além do mais, as grandes obras, sobretudo as artísticas, não se ficam por aí, manifestando uma certa continuidade de aspectos da vida humana durante as transformações históricas que os condicionam, habilitando a que elas renasçam integradas no espírito duma nova era, adquirindo o sentido e o valor que o contexto modificado torna possível.
Assevera Theodore Oïzerman:
«A filosofia (assim como as artes e a herança cultural) conserva um maior ou menor valor para além da época de que foi a emanação; é isso que cria a ilusão, no caso de uma tentativa idealista, da sua independência em relação à sua época. Mas esta ilusão desaparece desde que comecemos a analisar o conteúdo social, o alcance cognitivo e também a conexão histórica das épocas, no campo do progresso da sociedade.»[15]
O mesmo autor enuncia um princípio, baseado numa determinada concepção do mundo, que se pretende sociológico mas que pode ser alargado, ‘mutatis mutandis’, ao tópico da percepção na psicologia da arte, o qual não pode, de facto, separar-se – segundo a nossa tese – das condições sociais vividas pelos indivíduos, nomeadamente os artistas, nem da especificidade, também de certo modo condicionada, do processo estético. Esse princípio é, na expressão de Oïzerman
«o imperativo categórico da sociologia marxista, a saber: a partir das percepções, das ideias relativas às coisas, voltar às próprias coisas, para conhecer por meio da análise científica as relações reais para elucidar o mecanismo do seu reflexo na consciência humana, substituir essas imagens deformadas da realidade por um sistema de conceitos científicos.»[16]
Isso não quer dizer que a filosofia e, em especial, a arte sejam substituíveis na sua existência real e social.
Oïzerman refere-se sobretudo à filosofia, da qual quer extrair o significado verdadeiro dado no contexto da época, por exemplo o sentido burguês da concepção “utilitarista” da felicidade humana nos philosophes do século XVIII, aumentando assim a compreensão tanto dos progressos e conflitos daquela sociedade quanto da sua filosofia.
É do mesmo modo claro que a arte também deforma a realidade, e, no entanto, deforma-a para melhor tentar entender, sentir e recriar a existência, mas, neste caso, a sua substituição teórica é impossível.
A arte é um produto social material que, portanto, não pode sublimar-se em conceitos.[17] É, todavia, analisável por estes, na função de conhecerem os motivos dos seus produtos e os mecanismos da sua recepção, de preferência quando se compreende que a deformação artística da realidade é uma projecção da vivência de agentes da e condicionados pela mesma realidade, reflectindo portanto um fenómeno social real.
[1] PIAGET, J., Lógica e Conhecimento Científico, I, trad. Sousa Dias do original Logique et Connaissance Scientifique, Gallimard, Paris, 1967, Livraria Civilização Editora, Porto, 1980, p. 25.
[2] Idem, Op. Cit., p. 26.
[3] O que, reconheça-se, não é exclusivo dos filósofos. Em boa verdade, todos os homens compreendem o mundo mediante a linguagem, mas só os filósofos fazem dela, sobretudo das suas significações hipostasiadas, ou a realidade em si ou a fronteira que separa o homem não sabem bem de quê.
[4] Desde a escolástica à filosofia analítica.
[5] BACON, F., Novum Organum, Livro I, § 59, trad. António Magalhães, Rés-Editora, Porto, s/d, p. 43, do original latino estabelecido por J. Spelding, R. Ellis e D. D. Heath em The Works of Francis Bacon, Vol. I, Ed. Friedrich Fromman, Gunther Holzboog Verlag, Stuttgard-Bad, 1963.
[6] Idem, Op. Cit., Livro I, § 62, p. 46.
[7] Idem, Op. Cit., Livro I, § 41, p. 35.
[8] Ou vai permitir mais tarde, a partir do século XIX.
[9] Entendemos aqui por “filosofia” só a que é metafísica, virando as costas à ciência ou tentando fundamentá-la por princípios transcendentes ou transcendentais.
[10] Chegando a exclamar que “o amado não interessa ao seu amante senão na medida em que é um objecto exterior”, um pouco à maneira do psicanalista Jacques Lacan que numa aula da Sorbonne proferiu a ideia de que “não existe relação sexual”.
[11] BAUER, E., “Hurenverhältnisse”, in MARX ENGELS, Die Heilige Familie, in MEW, Band 2, P. 21, pela trad. port. de Fiama Hasse Pais Brandão, Editorial Presença, Lisboa, 1974 p. 30.
[12] Cf. SWIFT, J., “Cassino e Pedro – Elegia Trágica” (1733). Se Cassino fosse filósofo, provavelmente teria aceite a advertência de Aristóteles contra a desmesurada paixão: «O sábio não procura alcançar o prazer mas evitar a dor.» (ARISTÓTELES, Ethique, ed. russa, S. Petersburg, 1908, p. 12, cit., Théodore Oïzermann, Problemas de História da Filosofia, trad. Antonieta Azevedo, Livros Horizonte, Lisboa, 1976, p. 25, da ed. fr., Editions du Progrès, 1973). Apesar deste prenúncio estóico, Aristóteles inclinava-se contudo para um entendimento mais equilibrado do Bem, manifestando-se de acordo com o dístico por si citado, e inscrito, apolineamente, em Delos de que «“A Justiça é a mais nobre, e a saúde o melhor, / Mas o desejo do coração é o mais agradável.”» (Idem, Nicomachean Ethics, I, viii, 14-15, trad. H. Rackham, ed. bilingue, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1994, p. 43). Aristóteles procurou unir no Bem a Felicidade e a Justiça. Para ele o “fim político”, a justiça na acção social, era o “bem supremo”; Cézanne vivia numa sociedade em que o indivíduo civil estava separado do cidadão e o cidadão separado do homem: via nela uma impostura e desejava encontrar a felicidade e a justiça para o homem na unidade com a Natureza, que não era para ele um retorno mas a demonstração estética de que a verdade humana é pré-política, o lugar em que a necessidade encontra a sua liberdade.
[13] MARX, K., Op. Cit., Band 2, p. 21, trad. port. p. 31.
[14] Por transposição na esfera das Ideias e das idealizações e não na efectividade.
[15] OÏZERMAN, T., Op. Cit., p. 283.
[16] Idem, Op. Cit., p. 292.
[17] Para grande pesar de Hegel.

A Razão e o Último Avatar do Misticismo - 1



A mundividência de Merleau-Ponty fornece argumentos fortes para a distinção de Jean Piaget entre ciência e filosofia, que vão em sentido diferente da oposição irracionalista daquele autor. Escreve Piaget em Lógica e Conhecimento Científico, Vol. I:«A característica própria do conhecimento científico é a de conseguir uma certa objectividade, no sentido de que mediante o emprego de certos métodos, quer dedutivos (lógico-matemáticos), quer experimentais, há finalmente acordo entre todos os sujeitos sobre um determinado sector de conhecimentos.»,[1]
procedendo de seguida à sua diferenciação do pensamento filosófico:
«Um sistema filosófico, em troca, tende a fornecer a totalidade da experiência vivida, o que é bastante legítimo mas põe um problema bem diferente, que é talvez menos um problema de conhecimento do que de atitude geral e de vida. Assim, ele reflectirá, mais cedo o mais tarde, a personalidade do seu autor, bem como a ideologia do seu grupo social, de que esta personalidade é solidária. Além dos elementos do conhecimento objectivo, no sentido há pouco esboçado, comportará portanto necessariamente juízos de valor traduzindo o comprometimento do eu na sua sociedade e no seu universo. Em suma, tendendo a abraçar um conteúdo mais rico que o conhecimento científico, perderá correlativamente em objectividade, [...]»[2]
Sendo assim, a filosofia não deve ser encarada de um ponto-de-vista meramente negativo. Ela exprime, ao mais alto nível da reflexão, as preocupações éticas, os problemas gnoseológicos e ontológicos, os graves comprometimentos axiológicos do homem investido, à vez, numa certa situação, época, cultura e classe.
É devido a esta complexa interferência recíproca de aspectos objectivos que todas as eras são lugares de confronto de metafísicas contraditórias, assim como de percepções opostas do seu mundo.
Os artistas elevaram tais percepções ao nível da representação transfigurada da vida, com os seus medos e esperanças, fantasmas e encantamentos, glorificando ou denunciando o seu tempo.
Os filósofos vêem na arte um sinal do indivíduo criador na sucessão dos aqui e agora que lhe cabem, e interpretam, à medida do convívio com os temores e desejos próprios, as obras de arte como palcos do seu enredo pessoal e social.
Tanto os artistas quanto os filósofos não fogem de si mesmos ao “refazerem” nos seus produtos a realidade e ao interpretarem-se mutuamente: pelo contrário, exprimem, mesmo indirectamente, reprimindo-as sublimando, as relações objectivas (costumes, obrigações, ideologias, necessidades económicas e biológicas) de que dependem e a actividade subjectiva pessoal (ideias, sentimentos, desejos, projectos) condicionada pelo curso mais ou menos sistemático dos acontecimentos exteriores.
O segredo da filosofia não é, portanto, ou todavia, o do sentido das coisas. O sentido objectivo da relação do homem com as coisas é que é o segredo da filosofia. Mas é um sentido que a filosofia não está em condições de disponibilizar de forma consciente, pois ela, exercida por intelectuais que têm por material de trabalho, meio de subsistência e de reconhecimento, a linguagem natural,[3] procura o fundamento da existência humana, ou a sua essência, na própria linguagem, na sua semântica e sintaxe reificadas,[4] a qual, na verdade, comunica e oculta simultaneamente as condições de vida. O homem não subsiste com palavras nem se alegra com tristezas.
Já Francis Bacon, no Novum Organum (1620) denunciava, como “Ídolos do Foro”, o atractivo mágico da linguagem, não só para o metafísico como para o comum dos mortais, atractivo de que Cézanne decidiu fugir, ainda que não se tivesse conseguido calar, orientando-nos, com isso, nos mistérios do que deveria ser uma relação perceptiva directa:
«as palavras podem virar e reflectir o seu poder contra o entendimento, efeito esse que tornou sofisticas e inactivas as ciências e a filosofia. É que as palavras são frequentemente impostas a partir da apreensão do homem comum e dissecam as coisas segundo as linhas mais perceptíveis ao entendimento comum. O que acontece é que quando um entendimento mais penetrante, uma observação mais atenta pretende deslocar essas linhas, a fim de as tornar mais conformes à natureza, as palavras [quais “primeiro-motor”, “destino”, “elementos substanciais”, “pesado” ou “leve”] opõem-se a esse intento com grande alarido.»[5]
O sábio, Procurador Geral, Ministro da Justiça, Chanceler do rei Jaime I, põe-nos igualmente de sobreaviso, talvez por experiência própria, contra os enredos teóricos e as falácias pseudo-demonstrativas, que, ambos, ligando as palavras umas às outras, concluem pelo ponto donde a vontade humana partiu. Juiz em causa própria, nada pode provar, mas satisfaz a auto-estima e convence quem aceita tais regras do jogo sem saber de que se trata dum jogo viciado.
Advertindo de tais ilusões, denominadas por ele de “Ídolos do Teatro”, escreve:
«As fábulas deste tipo de teatro têm isso em comum com aquilo que é usual no teatro dos poetas: as narrações imaginadas para a cena são mais harmoniosas, mais elegantes e mais conformes àquilo que pretendemos que elas sejam do que as narrações verídicas extraídas da História.»[6]
Em suma, Francis Bacon afirmava no século XVII, muito antes do aparecimento dos Ideólogos (séc. XIX), que as ilusões não são só fábulas inventadas mas expressão da própria natureza humana, tornando possível conhecê-la melhor:
«Os Ídolos da Tribo têm o seu fundamento na própria natureza humana, na raça, na espécie humana. [...] O entendimento humano assemelha-se a um espelho imperfeito que, exposto aos raios das coisas, mistura a sua própria natureza com a natureza das coisas, falseando-as e distorcendo-as.»[7]
O reconhecimento desta inversão do sentido ser-pensar permite[8]compreender a filosofia, já não como elucidação do ser, mas como sintoma de um estado de coisas no universo humano, revalorizando-a enquanto facto resultante do desenvolvimento dos processos objectivos de existência, que leva ao surgir do trabalho espiritual abstracto, o qual contribui para determinar cada estádio social como uma específica, rica e contraditória actividade retroactiva entre as forças e relações produtivas, a organização política, as formas espirituais objectivas e hipostasiadas da moral, do direito e da religião, reguladoras do comportamento, estádio cuja cúpula, nas sociedades democráticas, além da ciência e da arte, é constituída pela filosofia, a qual, reificação das reificações, tende a inverter todo o processo social.
Se ela julga a dor como causa da doença, o sofrimento espiritual como patologia do espírito puro, cabe ao cientista verificar que distúrbios objectivos estão na base dos padecimentos metafísicos.[9]
Exemplifiquemos. Marx, em A Sagrada Família, comenta jocosamente a crítica indignada do neo-hegeliano Edgar Bauer a um livro do comissário da polícia Béraud em Paris sobre a prostituição tratada como um problema de ordem pública. Embora as “mulheres da rua”, assim como os bordéis e as(os) amantes, sejam um efeito das necessidades humanas insatisfeitas pela estrutura da família numa dada ordem social, Bauer julga a prostituição como resultado do “sofrimento do Amor”, mostrando apenas com isso a importância e o facto, não explicado, da perversão, numa certa sociedade, do amor enquanto necessidade humana, demasiado humana para ele, além do facto subjectivo de auto-repressão por sublimação filosófica.[10]
Primeiro Marx cita um estrato patético do texto de Edgar Bauer:
«O amor… é um deus cruel que, como todas as divindades, quer possuir o homem inteiro e só tem descanso quando o homem lhe tiver sacrificado não só a alma mas ainda o seu Eu físico. O culto do amor é o sofrimento, e o apogeu deste culto é o sacrifício de si mesmo, o suicídio.»[11]
Depois, mostra o processo pelo qual o amor é sublimado por Bauer, mas não à maneira kantiana, que dessa maneira poderia ter evitado as variadas desilusões da paixão, entre as quais elegeu o sacrifício, em vez de outras estratégias possíveis, designadamente a pseudodesmistificação mitológica dos encantos do sexo, satirizada por Jonathan Swift na descoberta do personagem Cassino de que as belas formas femininas também evacuam:[12]
«O Sr. Edgar faz do amor “um deus”, e ainda por cima “um deus cruel”, substituindo ao homem que ama, ao amor do homem, o homem do amor, destacando do homem o “Amor”, do qual faz um ser particular e a quem confere uma existência independente. Por este simples processo, por esta metamorfose do atributo em sujeito, pode-se criticamente transformar todas as determinações essenciais do homem em monstros e alienações do ser.»[13]
Portanto, ao exprimir através das palavras as questões da subsistência, da vontade de persistir, da realização humana, da infelicidade, da auto-estima, da convivência e da natureza das coisas, interpretando o mundo à medida das suas frustrações, contentamento ou conformismo, o filósofo, zangado o mais das vezes com a resistência da objectividade, numa linguagem cujo esoterismo constitui uma riqueza que é sua propriedade (por suposto vedada às forças sociais, acessível apenas aos bons livros) e também a porta de acesso à “verdade”, faz corresponder, de forma mediata, por não se distinguir real mas apenas idealmente[14] do mundo real, as provações dos mais elevados ou mais considerados valores humanos às próprias condições de vida.
Hipótese a reconsiderar será a de que é a própria realidade social a inverter-se objectivamente: ao alienar o homem, ou no facto do homem se alienar a si mesmo na criação da sociedade, a sociedade converte o “amor” num poder estranho diante do homem, que o eleva a um estatuto mitológico ou metafísico, a um deus ou a uma ideia.
O “amor” torna-se num ideal dificilmente alcançável e uma entidade abstracta que “é” por si, fazendo do homem um seu predicado e de si próprio uma essência humana situada acima do homem. Portanto, o homem pode, a partir de então, viver para o “amor”, assim como para a “natureza”, para a “liberdade”, para a “economia”, para “Deus”, produzindo e alcandorando as categorias metafísicas a fim terminal da existência humana.
É possível que resida nesse processo grande parte da “verdade” da filosofia e da arte.
E, no entanto, do mesmo modo que não se pode deduzir a Revolução Francesa da Fenomenologia do Espírito de Hegel, também o regime da IIIª República não é explicável a partir das pinturas de Cézanne, relativamente independentes das relações de produção e das estruturas sociais objectivas.
Não modelando nem reflectindo a época de maneira directa, as filosofias e as artes constituem uma tradução, mediante as suas formas expressivas (semânticas e perceptivas), da experiência de vida, pertencendo-lhe como um elemento que a permite elucidar melhor – até por via das suas oposições.
Além do mais, as grandes obras, sobretudo as artísticas, não se ficam por aí, manifestando uma certa continuidade de aspectos da vida humana durante as transformações históricas que os condicionam, habilitando a que elas renasçam integradas no espírito duma nova era, adquirindo o sentido e o valor que o contexto modificado torna possível.
Assevera Theodore Oïzerman:
«A filosofia (assim como as artes e a herança cultural) conserva um maior ou menor valor para além da época de que foi a emanação; é isso que cria a ilusão, no caso de uma tentativa idealista, da sua independência em relação à sua época. Mas esta ilusão desaparece desde que comecemos a analisar o conteúdo social, o alcance cognitivo e também a conexão histórica das épocas, no campo do progresso da sociedade.»[15]
O mesmo autor enuncia um princípio, baseado numa determinada concepção do mundo, que se pretende sociológico mas que pode ser alargado, ‘mutatis mutandis’, ao tópico da percepção na psicologia da arte, o qual não pode, de facto, separar-se – segundo a nossa tese – das condições sociais vividas pelos indivíduos, nomeadamente os artistas, nem da especificidade, também de certo modo condicionada, do processo estético. Esse princípio é, na expressão de Oïzerman
«o imperativo categórico da sociologia marxista, a saber: a partir das percepções, das ideias relativas às coisas, voltar às próprias coisas, para conhecer por meio da análise científica as relações reais para elucidar o mecanismo do seu reflexo na consciência humana, substituir essas imagens deformadas da realidade por um sistema de conceitos científicos.»[16]
Isso não quer dizer que a filosofia e, em especial, a arte sejam substituíveis na sua existência real e social.
Oïzerman refere-se sobretudo à filosofia, da qual quer extrair o significado verdadeiro dado no contexto da época, por exemplo o sentido burguês da concepção “utilitarista” da felicidade humana nos philosophes do século XVIII, aumentando assim a compreensão tanto dos progressos e conflitos daquela sociedade quanto da sua filosofia.
É do mesmo modo claro que a arte também deforma a realidade, e, no entanto, deforma-a para melhor tentar entender, sentir e recriar a existência, mas, neste caso, a sua substituição teórica é impossível.
A arte é um produto social material que, portanto, não pode sublimar-se em conceitos.[17] É, todavia, analisável por estes, na função de conhecerem os motivos dos seus produtos e os mecanismos da sua recepção, de preferência quando se compreende que a deformação artística da realidade é uma projecção da vivência de agentes da e condicionados pela mesma realidade, reflectindo portanto um fenómeno social real.
[1] PIAGET, J., Lógica e Conhecimento Científico, I, trad. Sousa Dias do original Logique et Connaissance Scientifique, Gallimard, Paris, 1967, Livraria Civilização Editora, Porto, 1980, p. 25.
[2] Idem, Op. Cit., p. 26.
[3] O que, reconheça-se, não é exclusivo dos filósofos. Em boa verdade, todos os homens compreendem o mundo mediante a linguagem, mas só os filósofos fazem dela, sobretudo das suas significações hipostasiadas, ou a realidade em si ou a fronteira que separa o homem não sabem bem de quê.
[4] Desde a escolástica à filosofia analítica.
[5] BACON, F., Novum Organum, Livro I, § 59, trad. António Magalhães, Rés-Editora, Porto, s/d, p. 43, do original latino estabelecido por J. Spelding, R. Ellis e D. D. Heath em The Works of Francis Bacon, Vol. I, Ed. Friedrich Fromman, Gunther Holzboog Verlag, Stuttgard-Bad, 1963.
[6] Idem, Op. Cit., Livro I, § 62, p. 46.
[7] Idem, Op. Cit., Livro I, § 41, p. 35.
[8] Ou vai permitir mais tarde, a partir do século XIX.
[9] Entendemos aqui por “filosofia” só a que é metafísica, virando as costas à ciência ou tentando fundamentá-la por princípios transcendentes ou transcendentais.
[10] Chegando a exclamar que “o amado não interessa ao seu amante senão na medida em que é um objecto exterior”, um pouco à maneira do psicanalista Jacques Lacan que numa aula da Sorbonne proferiu a ideia de que “não existe relação sexual”.
[11] BAUER, E., “Hurenverhältnisse”, in MARX ENGELS, Die Heilige Familie, in MEW, Band 2, P. 21, pela trad. port. de Fiama Hasse Pais Brandão, Editorial Presença, Lisboa, 1974 p. 30.
[12] Cf. SWIFT, J., “Cassino e Pedro – Elegia Trágica” (1733). Se Cassino fosse filósofo, provavelmente teria aceite a advertência de Aristóteles contra a desmesurada paixão: «O sábio não procura alcançar o prazer mas evitar a dor.» (ARISTÓTELES, Ethique, ed. russa, S. Petersburg, 1908, p. 12, cit., Théodore Oïzermann, Problemas de História da Filosofia, trad. Antonieta Azevedo, Livros Horizonte, Lisboa, 1976, p. 25, da ed. fr., Editions du Progrès, 1973). Apesar deste prenúncio estóico, Aristóteles inclinava-se contudo para um entendimento mais equilibrado do Bem, manifestando-se de acordo com o dístico por si citado, e inscrito, apolineamente, em Delos de que «“A Justiça é a mais nobre, e a saúde o melhor, / Mas o desejo do coração é o mais agradável.”» (Idem, Nicomachean Ethics, I, viii, 14-15, trad. H. Rackham, ed. bilingue, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1994, p. 43). Aristóteles procurou unir no Bem a Felicidade e a Justiça. Para ele o “fim político”, a justiça na acção social, era o “bem supremo”; Cézanne vivia numa sociedade em que o indivíduo civil estava separado do cidadão e o cidadão separado do homem: via nela uma impostura e desejava encontrar a felicidade e a justiça para o homem na unidade com a Natureza, que não era para ele um retorno mas a demonstração estética de que a verdade humana é pré-política, o lugar em que a necessidade encontra a sua liberdade.
[13] MARX, K., Op. Cit., Band 2, p. 21, trad. port. p. 31.
[14] Por transposição na esfera das Ideias e das idealizações e não na efectividade.
[15] OÏZERMAN, T., Op. Cit., p. 283.
[16] Idem, Op. Cit., p. 292.
[17] Para grande pesar de Hegel.