Há no filósofo Merleau-Ponty, tal como no pintor Cézanne, uma vontade de imanência sensível, de mundanidade, mas ao mesmo tempo, em contrapartida, a tendência para uma nova forma de espiritualização do corpo, o corpo como vidente e auto-visível que se revê, não manipulado de fora, para além de toda a razão constrangedora, na originariedade duma Natureza muda, não submetida ainda às categorias da morfologia moral e económica nem à sintaxe de um universo de coisas que o homem tem por função manter. Descobre-se, pois, neles a nostalgia duma Natureza ainda intocada pelo utilitarismo da civilização, que fez do homem um seu instrumento e o terá afastado de tudo aquilo que ele é “antes da reflexão”, do “berço das significações”.
É evidente que não se trata ainda de explicar a realidade, de penetrar nas suas leis através da transformação social e experimental e da “observação razoada e seguida”, como dizia Buffon no Prefácio da sua Histoire Naturelle de 1749, mas de a interpretar em função do desejo, no seu caso duma bela nostalgia, a qual, porém, se apresenta como uma maneira de contrapor a uma razão estreita – tornada “utensílio” de exploração humana e de guerra, portanto, segundo nós, razão irracional e não ciência mas manipulação ideológica e política das conquistas da Física, da Biologia, da Psicologia – uma significação humanista do conhecimento, obtida por um retorno espiritual à identidade originária, nascente e correlacionadora, do homem com a Natureza, da qual aqueles saberes operacionais teriam surgido e para a qual teriam de se manter virados.
Escreve, pois, Merleau-Ponty que a Fenomenologia«É o ensaio duma descrição directa da nossa experiência tal qual é, não dizendo respeito à sua génese psicológica e às explicações causais [...]»,
para mais à frente enunciar, num registo “quase” egotista, a tese radical da sua filosofia, que se destina a descrever o mundo percebido e não a dar uma explicação da percepção do mundo, explicação que é já uma relação segunda, esquematizadora e instrumental, com esse mundo, e não a experiência vivida:
«Eu não sou um “ser vivo” ou mesmo um “homem”, ou mesmo “uma consciência”, com todos os caracteres que a zoologia, a anatomia social ou a psicologia indutiva reconhecem a esses produtos da natureza ou da história – eu sou a fonte absoluta, a minha existência não vem dos meus antecedentes, do meu ambiente físico e social; ela vai para eles e sustenta-os, porque sou eu que faz ser para mim (e portanto “ser” no único sentido que a palavra possa ter para mim) essa tradição que escolho retomar, esse horizonte cuja distância em relação a mim se cavaria, pois que a fonte absoluta não lhe pertence como uma propriedade, se não estivesse lá para a percorrer pelo olhar.»
Em suma, para a Fenomenologia de Merleau-Ponty, que vê no conhecimento um obstáculo à experiência da verdade das coisas ou das coisas de verdade,
«Voltar às coisas mesmas é regressar a esse mundo anterior ao conhecimento e de que o conhecimento sempre fala, e a respeito do qual toda a determinação científica é abstracta, significativa e dependente, tal como a geografia a propósito da paisagem em que aprendemos antes de tudo o que é uma floresta, uma pradaria ou uma ribeira.»
Demos aqui um exemplo da ambivalência da metafísica: por um lado denunciadora e problematizadora e, por outro, mistificadora e dada com facilidade ao irracionalismo.
Por isso, precisamos de desvalorizar o suposto alcance gnosiológico não só da vetusta mas persistente atitude escolástica como das aventuras contemporâneas da pura especulação, ainda que tenham partido duma crítica da ciência.
Mas a ciência, enquanto tal, não pode ser criticada do exterior, se a entendermos como obra aberta, pelos seus próprios princípios e métodos, que incluem a consideração ponderada das interpretações especulativas e o uso das mais extravagantes hipóteses, sujeitas ao escrutínio da experiência, apoiada nos recursos técnicos e teóricos disponíveis, ou, no limite, à espera do aperfeiçoamento dialéctico dos meios.
Concerteza – já o dissemos – que não devemos desqualificar por completo a especulação, como o faz o positivismo radical, pois esta pode ser estimulante e levar mesmo a investigação a reorientar-se por vias fecundas até então insuspeitas e à exigência de criar novos métodos e instrumentos de prova. Não existem critérios ‘a priori’ que definam se um problema é científico ou não. Todavia, é a ciência, enquanto processo de racionalização dos problemas da existência humana e das possibilidades da sua solução – sempre imperfeita e insatisfeita consigo mesma –, que tem a última e provisória palavra no âmbito do conhecimento.
Repare-se, contudo, que, se a ciência é a “senhora” do saber, é também a servidora dos sonhos e necessidades de realização dos homens e depende, em interacção, para singrar, do seu poder, prático e ideológico, sobre o mundo que se vai modificando.
Mas ela também está, de algum modo, sempre enredada pelas mitologias do seu tempo, confundindo-se muitas vezes com a sua racionalização. Por isso, é preciso um esforço filosófico-científico de distinção entre o racional e o racionalizante em cada proposta científica que surge quase sempre envolta, para os espíritos mais simples, por uma aura de verdade cumulativa, assim como um trabalho de desmistificação dos irracionalismos – intuicionismos, intencionalismos, identidades ontológicas ambíguas – que se apoiam em parte nessa ingenuidade para confundirem a ciência com uma mera tecnologia de manipulação da realidade.
A mundividência de Merleau-Ponty fornece, porém, argumentos fortes para a distinção de Jean Piaget entre ciência e filosofia, que vão em sentido diferente da oposição irracionalista daquele autor. Escreve Piaget em Lógica e Conhecimento Científico, Vol. I: «A característica própria do conhecimento científico é a de conseguir uma certa objectividade, no sentido de que mediante o emprego de certos métodos, quer dedutivos (lógico-matemáticos), quer experimentais, há finalmente acordo entre todos os sujeitos sobre um determinado sector de conhecimentos.»,
procedendo de seguida à sua diferenciação do pensamento filosófico:
«Um sistema filosófico, em troca, tende a fornecer a totalidade da experiência vivida, o que é bastante legítimo mas põe um problema bem diferente, que é talvez menos um problema de conhecimento do que de atitude geral e de vida. Assim, ele reflectirá, mais cedo o mais tarde, a personalidade do seu autor, bem como a ideologia do seu grupo social, de que esta personalidade é solidária. Além dos elementos do conhecimento objectivo, no sentido há pouco esboçado, comportará portanto necessariamente juízos de valor traduzindo o comprometimento do eu na sua sociedade e no seu universo. Em suma, tendendo a abraçar um conteúdo mais rico que o conhecimento científico, perderá correlativamente em objectividade, [...]»
Sendo assim, a filosofia não deve ser encarada de um ponto-de-vista meramente negativo. Ela exprime, ao mais alto nível da reflexão, as preocupações éticas, os problemas gnoseológicos e ontológicos, os graves comprometimentos axiológicos do homem investido, à vez, numa certa situação, época, cultura e classe.
É devido a esta complexa interferência recíproca de aspectos objectivos que todas as eras são lugares de confronto de metafísicas contraditórias, assim como de percepções opostas do seu mundo.
Os artistas elevaram tais percepções ao nível da representação transfigurada da vida, com os seus medos e esperanças, fantasmas e encantamentos, glorificando ou denunciando o seu tempo.
Os filósofos vêem na arte um sinal do indivíduo criador na sucessão dos aqui e agora que lhe cabem, e interpretam, à medida do convívio com os temores e desejos próprios, as obras de arte como palcos do seu enredo pessoal e social.
Tanto os artistas quanto os filósofos não fogem de si mesmos ao “refazerem” nos seus produtos a realidade e ao interpretarem-se mutuamente: pelo contrário, exprimem, mesmo indirectamente, reprimindo-as sublimando, as relações objectivas (costumes, obrigações, ideologias, necessidades económicas e biológicas) de que dependem e a actividade subjectiva pessoal (ideias, sentimentos, desejos, projectos) condicionada pelo curso mais ou menos sistemático dos acontecimentos exteriores.
O segredo da filosofia não é, portanto, ou todavia, o do sentido das coisas. O sentido objectivo da relação do homem com as coisas é que é o segredo da filosofia. Mas é um sentido que a filosofia não está em condições de disponibilizar de forma consciente, pois ela, exercida por intelectuais que têm por material de trabalho, meio de subsistência e de reconhecimento, a linguagem natural, procura o fundamento da existência humana, ou a sua essência, na própria linguagem, na sua semântica e sintaxe reificadas, a qual, na verdade, comunica e oculta simultâneamente as condições de vida. O homem não subsiste com palavras nem se alegra com tristezas.
Já Francis Bacon, no Novum Organum (1620) denunciava, como “Ídolos do Foro”, o atractivo mágico da linguagem, não só para o metafísico como para o comum dos mortais, atractivo de que Cézanne decidiu fugir, ainda que não se tivesse conseguido calar, orientando-nos, com isso, nos mistérios do que deveria ser uma relação perceptiva directa:
«as palavras podem virar e reflectir o seu poder contra o entendimento, efeito esse que tornou sofísticas e inactivas as ciências e a filosofia. É que as palavras são frequentemente impostas a partir da apreensão do homem comum e dissecam as coisas segundo as linhas mais perceptíveis ao entendimento comum. O que acontece é que quando um entendimento mais penetrante, uma observação mais atenta pretende deslocar essas linhas, a fim de as tornar mais conformes à natureza, as palavras [quais “primeiro-motor”, “destino”, “elementos substanciais”, “pesado” ou “leve”] opõem-se a esse intento com grande alarido.»
O sábio, Procurador Geral, Ministro da Justiça, Chanceler do rei Jaime I, põe-nos igualmente de sobreaviso, talvez por experiência própria, contra os enredos teóricos e as falácias pseudo-demonstrativas, que, ambos, ligando as palavras umas às outras, concluem pelo ponto donde a vontade humana partiu. Juiz em causa própria, nada pode provar, mas satisfaz a auto-estima e convence quem aceita tais regras do jogo sem saber de que se trata dum jogo viciado.
Advertindo de tais ilusões, denominadas por ele de “Ídolos do Teatro”, escreve:
«As fábulas deste tipo de teatro têm isso em comum com aquilo que é usual no teatro dos poetas: as narrações imaginadas para a cena são mais harmoniosas, mais elegantes e mais conformes àquilo que pretendemos que elas sejam do que as narrações verídicas extraídas da História.»