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Filosofia da Terra

Furar o Nevoeiro da Ideologia Burguesa. O Bem, a Verdade e o Belo - Paradigmas Unidos da Vida. Um Olhar e uma Voz Diferentes, Livres, Progressistas e Revolucionárias. Filosofia, Artes, Política, Acontecimentos, Reflexões.

Arte, Filosofia, Ciência - Digressões 1


arte é uma actividade prática, um género de transformação do mundo pelo ser humano, representando vários aspectos e funções de ordem psicológica, moral e social, de que os agentes e os receptores possuem mais ou menos consciência.
Há muito tempo que as metodologias e dados científicos apontam para o facto de se ter de prescindir de uma vez por todas da tentação de se pisar e repisar o tema metafísico doBelo, argumentando e contra-argumentando especulativamente acerca da sua transcendência ou não, da sua naturalidade ou não, de ser ou não de instância transcendental ou um mero nome conveniente para significar, com grande dose de arbitrariedade cultural ou idiossincrática, uma classe de estados mentais que ocorreriam na presença de certos estímulos.[1] Parece, na actualidade, absurdo – fora da inércia do círculo filosófico académico, que assim pretende justificar a rotina de escrever sobre o que se escreveu a propósito das meditações de um grande metafísico e das suas célebres disputas com outros, tratado de acordo com a reverência prestada às “vacas sagradas” –, reflectir sobre a significação do termo Belo abstraindo-se dos, ou qualificando ‘a priori’, os objectos pertencentes à História da Arte, e desdenhando das observações e experimentos feitos ou a fazer, sob a proposta de hipóteses teóricas controladas, a respeito dos fenómenos que diversas teorias, provisórias como todas, caracterizam como belos ou com qualquer outra designação menos conotada com a metafísica.
Tal como a arte é uma actividade prática que, portanto, só se forma, se justifica e se comprova no seu valor pela prática, também qualquer declaração verbal obedece ao mesmo critério. O pensamento objectivo acerca de toda a actividade prática, inserido no processo global da existência humana social, reflecte a actividade prática objectiva. A não ser assim, o pensamento nada mais é do que projecção ideológica: apenas “medita”, encerra-se no círculo de si-mesmo com as suas ideias feitas, ficando voluntariamente, por ressentimento[2] ou por auto-fascínio,[3] de fora da realidade. ‘A fortiori’, esta tese materialista implica que o pensamento objectivo é um elemento reflexivo da actividade prática, orientando o e orientado pelo executar objectivamente efectivo.
Muito depois de Leonardo, Galileu e Vico,[4] Marx reforçou e aprofundou – na esfera “filosófica”, posto que nas ciências naturais há bastante acontecia – esse princípio básico do conhecimento objectivo, cunhando-o na 2ª Tese sobre Feuerbach:
«A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não-realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica[5]
Marx rematou-a com a diversamente traduzida e tão mal compreendida, por descontextualizada, 11ª Tese:
«Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; o que importa depois disso [«es kömmt drauf an»] é transformá-lo[6]

[1] Esta tese, nominalista, entre as designadas, é a única cautelosa e a que se presta a um ponto de partida para a investigação estética.
[2] Cf. Nietzsche.
[3] Cf. Feuerbach, Marx, Freud.
[4] É dele a frase «verum factum» (“o verdadeiro e o feito são o mesmo”).
[5] MARX, K., Thesen über Feuerbach (1845), in MARX ENGELS Ausgewählt Werke, Band I, Dietz Verlag, Berlin, 1987 p. 196.
[6] Idem, Op. Cit., p. 200.

Arte, Filosofia, Ciência - Digressões 1


arte é uma actividade prática, um género de transformação do mundo pelo ser humano, representando vários aspectos e funções de ordem psicológica, moral e social, de que os agentes e os receptores possuem mais ou menos consciência.
Há muito tempo que as metodologias e dados científicos apontam para o facto de se ter de prescindir de uma vez por todas da tentação de se pisar e repisar o tema metafísico doBelo, argumentando e contra-argumentando especulativamente acerca da sua transcendência ou não, da sua naturalidade ou não, de ser ou não de instância transcendental ou um mero nome conveniente para significar, com grande dose de arbitrariedade cultural ou idiossincrática, uma classe de estados mentais que ocorreriam na presença de certos estímulos.[1] Parece, na actualidade, absurdo – fora da inércia do círculo filosófico académico, que assim pretende justificar a rotina de escrever sobre o que se escreveu a propósito das meditações de um grande metafísico e das suas célebres disputas com outros, tratado de acordo com a reverência prestada às “vacas sagradas” –, reflectir sobre a significação do termo Belo abstraindo-se dos, ou qualificando ‘a priori’, os objectos pertencentes à História da Arte, e desdenhando das observações e experimentos feitos ou a fazer, sob a proposta de hipóteses teóricas controladas, a respeito dos fenómenos que diversas teorias, provisórias como todas, caracterizam como belos ou com qualquer outra designação menos conotada com a metafísica.
Tal como a arte é uma actividade prática que, portanto, só se forma, se justifica e se comprova no seu valor pela prática, também qualquer declaração verbal obedece ao mesmo critério. O pensamento objectivo acerca de toda a actividade prática, inserido no processo global da existência humana social, reflecte a actividade prática objectiva. A não ser assim, o pensamento nada mais é do que projecção ideológica: apenas “medita”, encerra-se no círculo de si-mesmo com as suas ideias feitas, ficando voluntariamente, por ressentimento[2] ou por auto-fascínio,[3] de fora da realidade. ‘A fortiori’, esta tese materialista implica que o pensamento objectivo é um elemento reflexivo da actividade prática, orientando o e orientado pelo executar objectivamente efectivo.
Muito depois de Leonardo, Galileu e Vico,[4] Marx reforçou e aprofundou – na esfera “filosófica”, posto que nas ciências naturais há bastante acontecia – esse princípio básico do conhecimento objectivo, cunhando-o na 2ª Tese sobre Feuerbach:
«A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não-realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica[5]
Marx rematou-a com a diversamente traduzida e tão mal compreendida, por descontextualizada, 11ª Tese:
«Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; o que importa depois disso [«es kömmt drauf an»] é transformá-lo[6]

[1] Esta tese, nominalista, entre as designadas, é a única cautelosa e a que se presta a um ponto de partida para a investigação estética.
[2] Cf. Nietzsche.
[3] Cf. Feuerbach, Marx, Freud.
[4] É dele a frase «verum factum» (“o verdadeiro e o feito são o mesmo”).
[5] MARX, K., Thesen über Feuerbach (1845), in MARX ENGELS Ausgewählt Werke, Band I, Dietz Verlag, Berlin, 1987 p. 196.
[6] Idem, Op. Cit., p. 200.

Arte, Filosofia, Ciência - Digressões 1


arte é uma actividade prática, um género de transformação do mundo pelo ser humano, representando vários aspectos e funções de ordem psicológica, moral e social, de que os agentes e os receptores possuem mais ou menos consciência.
Há muito tempo que as metodologias e dados científicos apontam para o facto de se ter de prescindir de uma vez por todas da tentação de se pisar e repisar o tema metafísico doBelo, argumentando e contra-argumentando especulativamente acerca da sua transcendência ou não, da sua naturalidade ou não, de ser ou não de instância transcendental ou um mero nome conveniente para significar, com grande dose de arbitrariedade cultural ou idiossincrática, uma classe de estados mentais que ocorreriam na presença de certos estímulos.[1] Parece, na actualidade, absurdo – fora da inércia do círculo filosófico académico, que assim pretende justificar a rotina de escrever sobre o que se escreveu a propósito das meditações de um grande metafísico e das suas célebres disputas com outros, tratado de acordo com a reverência prestada às “vacas sagradas” –, reflectir sobre a significação do termo Belo abstraindo-se dos, ou qualificando ‘a priori’, os objectos pertencentes à História da Arte, e desdenhando das observações e experimentos feitos ou a fazer, sob a proposta de hipóteses teóricas controladas, a respeito dos fenómenos que diversas teorias, provisórias como todas, caracterizam como belos ou com qualquer outra designação menos conotada com a metafísica.
Tal como a arte é uma actividade prática que, portanto, só se forma, se justifica e se comprova no seu valor pela prática, também qualquer declaração verbal obedece ao mesmo critério. O pensamento objectivo acerca de toda a actividade prática, inserido no processo global da existência humana social, reflecte a actividade prática objectiva. A não ser assim, o pensamento nada mais é do que projecção ideológica: apenas “medita”, encerra-se no círculo de si-mesmo com as suas ideias feitas, ficando voluntariamente, por ressentimento[2] ou por auto-fascínio,[3] de fora da realidade. ‘A fortiori’, esta tese materialista implica que o pensamento objectivo é um elemento reflexivo da actividade prática, orientando o e orientado pelo executar objectivamente efectivo.
Muito depois de Leonardo, Galileu e Vico,[4] Marx reforçou e aprofundou – na esfera “filosófica”, posto que nas ciências naturais há bastante acontecia – esse princípio básico do conhecimento objectivo, cunhando-o na 2ª Tese sobre Feuerbach:
«A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não-realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica[5]
Marx rematou-a com a diversamente traduzida e tão mal compreendida, por descontextualizada, 11ª Tese:
«Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; o que importa depois disso [«es kömmt drauf an»] é transformá-lo[6]

[1] Esta tese, nominalista, entre as designadas, é a única cautelosa e a que se presta a um ponto de partida para a investigação estética.
[2] Cf. Nietzsche.
[3] Cf. Feuerbach, Marx, Freud.
[4] É dele a frase «verum factum» (“o verdadeiro e o feito são o mesmo”).
[5] MARX, K., Thesen über Feuerbach (1845), in MARX ENGELS Ausgewählt Werke, Band I, Dietz Verlag, Berlin, 1987 p. 196.
[6] Idem, Op. Cit., p. 200.



As correntes da pedagogia contemporânea, genericamente designada por “escola nova”, nas suas múltiplas e pluralistas abordagens, e não indo muito para trás de meados do século XIX, ultrapassaram o naturalismo das Luzes do século XVIII (a corrente filosófica moderna que melhor viu o problema da educação enquanto determinante no desenvolvimento do indivíduo e no progresso social), de que um dos principais representantes e interessados no processo educativo fora Diderot, injustamente esquecido quanto ao seu papel na origem da pedagogia dos nossos tempos. Ficou lembrado bastante mais, e com plena justiça, aliás, o romantismo naturalista, afectivo e anti-intelectualista de Rousseau, pelas suas marcas deixadas na pedagogia contemporânea, em particular no que toca ao seu pendor pedocêntrico.
A chamada “escola nova”, na sua diversidade de atitudes pedagógicas e filosóficas, partiu-se todavia muito cedo em duas posições relativamente opostas (opostas doutrinariamente, mas apenas relativamente nos seus métodos): a que se fundava em concepções materialistas mas já dialécticas, embora na maior parte dos casos mal compreendidas (FreinetMakarenko), e a que, percorrendo um caminho ambíguo (em simultâneo implementador das potencialidades e da criatividade e direccionador para visões de algum modo místicas – FroebelMontessori), calcorreou portanto vias idealistas.
Essas vias idealistas estavam fundidas com um biologismo seja vitalista criacionista com harmonia cognitiva pré-estabelecida, seja préformista com actualização de estruturas cognitivas virtuais ou latentes, seja emergentista com aparição de estruturas cognitivas novas irredutíveis às anteriores.
São inegáveis alguns predicados defendidos e praticados pela “escola nova”: uma real revolução contra a docência escolástica que tinha por objectivo a reprodução das mesmas classes de homens, a mesma ideologia política e religiosa, a perpetuação do modus vivendi et operandi adequado às relações de poder e ao fixismo das classes dominantes das épocas de estagnação, embora sempre combatidas por dentro devido às contradições sociais inerentes à própria necessidade de perpetuação do estado de coisas social. Contudo, precisamos de afirmar aqui bem claro que a génese e a diversidade de perspectivas em que o novo ensino se fragmentou tem – embora não posamos tomar em detalhe tal problemática nestas páginas –, além do reconhecimento devido pelos avanços oferecidos por ele à formação humana, por força de nos tornar cautelosos, ainda nos nosso tempos, quanto às ideias que faz passar e se tentam por esse meio institucionalizar-se.
Com efeito, a “escola nova” colocou pela primeira vez na época contemporânea a arte, o artesanato, a técnica, ao serviço da formação do homem desde a infância. Remotamente inspirada num certa visão das oficinas renascentistas, já visionadas por Diderot e actualizadas por este nas belas estampas de práticas industriais da Encyclopédie, desenvolveu doutrinas e técnicas com o fito de harmonizarem o belo e o trabalho na pessoa do seu agente criador, em especial na criança, colocada no centro do seu ensino.
Para que se entenda a complexidade, a ambiguidade e os equívocos – verdadeiramente trágicos – que encobre e despoleta a ideia simples e auto-evidente, talvez não só para os paladinos duma liberdade utópica, de que uma criança aprende mais e melhor se puder ter a liberdade de formar progressivamente, pela sua tendência espontânea, uma imagem integrada e integrante do seu mundo com as peças físicas e mentais que vai descobrindo e compondo – com o que está para sair da actividade livre da criança estimulada pelos desafios do mestre ou apenas pelos meios que este lhes deixa à disposição… Para que se entenda, como dizíamos, a dificuldade e confusão ideológica e técnica de fazer da aprendizagem uma construção estética da realidade, façamos um muito breve excurso sobre a “escola nova”, começando por lembrar algo de muito significativo a respeito das suas vagas mas poderosas inspirações.
Com efeito, um dos mais proeminentes doutrinadores da “educação pela arte” e inspirador de pedagogos de grande influência tais como Carl Rogers, Herbert Read e outros, fora um místico cristão.
Trata-se (permita-se-nos esta continuada perífrase) de Martin Buber, que lançou em 1923 o seu Eu e Tu que, de um ponto-de-vista metafísico, constituiu uma resposta ao projecto nascente de eliminação do outro pelo nazismo e à convicção do sionismo judaico que pretendia afirmar a sua identidade pelo separatismo, e que mais tarde publicou O Problema do Homem (1948), apresentando o ser humano como unidade corpo-alma, a pessoa como unidade de pensamento, palavra e acção, indicando que o problema é a unidade da própria pessoa, que pode levar a uma transformação em termos da unidade em si e entre as pessoas, pois a unidade própria de cada um compreende o “tu” como momento do todo do “eu”. Esse caminho é iniciado a partir do íntimo, a autenticidade supondo que ninguém pode dizer como percorrê-lo pois o que se trata é de descobrir-se a si mesmo como algo que nunca existiu e que só pode existir num percurso orgânico que só se realiza através de obras unitárias, gerando estas a unidade da unicidade do sujeito. Ora, o homem pode auto-unificar-se porque no mais íntimo da sua alma-corpo subjaze a força divina, o telos como o sentido autêntico da vida.
Está aqui implícita a ideia, muito cara a uma das correntes mais influentes da pedagogia actual, todavia ecléctica e talvez por isso sem nome, mas quase omnipenetrante, de que a criança e o adolescente devem ser estimulados a explorar e aprender por si mesmos quem são e o que é o mundo, a escola disponibilizando meios para esse progresso.
É pois uma forte corrente que acredita que o professor, mais do que ensinar, deve fomentar a autonomia na aprendizagem incentivando e sugerindo quando muito a exploração dos objectos, dos mecanismos, da organização do raciocínio e da integração de todos estes aspectos da actividade humana.
Claro que a ideia da arte na escola como expressão criadora difusa tem uma origem muito anterior – já com Platão há vinte e cinco séculos.
Na época contemporâneaFroebel, que abria em 1837 o primeiro jardim de infância, reformula a educação apresentando como essência da sua pedagogia a liberdade e a actividade. Foi um dos primeiros, senão o primeiro, dos educadores a levar o brinquedo para a escola, centrando o ensino na actividade lúdica, orientada para a espontaneidadeda aprendizagem, idealizando recursos sistematizados para as crianças se expressarem: blocos de construção e outros materiais que eram utilizados pelas crianças nas suas actividades criativas que simultâneamente desenvolviam a aptidão motora, de manipulação de raciocínio.
Sobretudo, o desenho e as práticas que envolvem o movimento e os ritmos eram para ele muitos importantes. Para a criança se conhecer, o primeiro passo seria chamar a atenção para os membros do seu próprio corpo, depois chegar aos movimentos das partes do corpo. Em A Educação do Homem (1826), escreve que a educação é o processo pelo qual o indivíduo se desenvolve com todos os seus poderes funcionando completa e harmoniosamente. O seu princípio, fundamentado por sua vez na unidade em Deus, é o da “parte-todo”, quanto no que toca na relação entre os objectos e os processos da aprendizagem quanto no respeitante às relações entre os homens.
Com o seu livro reactualiza as teses fundamentais que hão-de nortear a “escola nova” – aprofundada e praticada por personagens tão díspares nas suas raízes e intenções filosóficas, religiosas e políticas, como Maria MontessoriCélestin Freinet e Georg Steiner: a educação deve basear-se na evolução natural das actividades da criança, o objectivo do ensino é sempre extrair mais do homem do que colocar dentro dele – conceito que teve interpretações divergentes, algumas delas refreadoras do progresso da aprendizagem –, o verdadeiro desenvolvimento advém das actividades espontâneas. Teses a ter em grande conta para jardins-de-infância e escolas primárias, assim como magnífica atitude ou disposição pedagógica geral para a autonomia verdadeira e portanto sustentada no conhecimento acumulado da Humanidade, mas que todavia foram sendo generalizadas àaprendizagem de todas as matérias, por mais complexas e nada espontâneas que sejam.
Foi contudo apenas com o Modernismo artístico que a ideia de arte na escola alcançou o reconhecimento que a época individualista e criativa lhe devia, tendo como patronos Franz Cizek, artista do Movimento de Secessão de Viena, Viktor Lowenfeld e Herbert Read, que, para teorizarem sobre a relação entre Arte e Educação, no sentido mais vasto do termo, recorreram, o primeiro a Freud, os outros dois a Jung, o psicanalista místico, influenciado pelo Tai-Ki-Tôu chinês, do Jing e do Yang, e que não se afasta substancialmente das Ideias platónicas, penetradas agora de um aspecto afectivo.
Estes autores basearam por isso as suas convicções estéticas e pedagógicas em princípios impossíveis de qualquer controlo objectivo.
Ora, o movimento que teorizou e praticou a interligação entre arte e vida mais aproximável ao ideário de um dos grandes precursores relativamente esquecidos Diderot da pedagogia moderna – com as normais diferenças que os tempos implicam – terá sido talvez o Modernismo da Bauhaus (Weimar-Dessau, 1919-32, encerrada pelo nazismo). A ideia de ensino como processo criador de problemas e da sua resolução associado à produção de soluções para a vida humana e para a sociedade terá sido sistematizada nesta escola pela primeira vez. Com certeza, a actividade daBauhaus destinava-se aos jovens, dotados já de raciocínio hipotético-dedutivo, de capacidades verdadeiramente inventivas, e não às crianças de tenra idade. Concertezaigualmente que a sua prática não esteve sempre isenta de pressupostos místicos. Mas os resultados inventivos do seu ensino, embora cabíveis no sonho de Diderot, ultrapassaram o que poderia ser teorizado pelo seu ponto-de-partida fisiológico.
Sem dúvida, com já fizemos notar, que há uma ligação, indirecta com certeza, entre a opinião de Diderot sobre a arte como pedagogia e algumas das várias correntes educativas e políticas que no século XX se empenharam em fazer da arte uma técnica de progresso operacional e ideológico das crianças e jovens. Esse progresso foi, como estamos vendo, entendido distintamente segundo o pensamento e a orientação pedagógica e política dos mentores das diversas escolas que perfilharam a ideia de aprendizagem como formação, no sentido mais amplo do termo, incluindo o estético.
Repare-se no entanto que a “escola nova” e a função que Diderot esperava para a arte partem de uma tese semelhante, embora com fundamentos na maior parte dos casos opostos: a arte como percepção e recriação de relações reais. Na verdade a ideia de uma autêntica actividade de criação é inexistente em ambas, talvez à excepção da escola deFreinet, e ainda assim com limites. Só existiu de facto e foi teorizada pela Bauhaus.
Assim, estas novas pedagogias, junto com a sua visão pedagógica da arte, usada por certas variantes delas como modelo de ensino, só coincide parcialmente, por diversas razões, com o que é possível encontrar nas ideias de Diderot.
A ideia de Diderot nunca foi a de tornar a arte o modelo da educação – o que remeteria para uma concepção estética, holista, do homem e não fisiológica, como a pugnada por ele – mas um caso exemplar no curriculum duma educação que deveria integrar tanto o saber como o fazer.
Em todo o caso devemos levar em conta o que afirma um dos principais esteios dos que pugnaram no século XX pelo reforço da educação artística nos currículos escolares e que aplicou a Teoria da Gestalt aos problemas da estética e do seu papel fundamental no ensino, Rudolf Arnheim, embora este exija alguma contenção àqueles para quem, pedagogicamente, com a subsequente extensão a todas as formas objectivas da actividade social, tudo é arte, defende o papel crucial da actividade plástica na educação:
«A experiência prática é melhor provida pelo trabalho nas artes. Não é, todavia, boa estratégia etiquetar a sensibilidade perceptual de artística ou estética porque tal significa removê-la para um domínio privilegiado, reservado para os talentos e aspirações do especialista. O pensamento visual apela, mais amplamente, à habilidade para ver formas visuais como imagens de padrões de forças que suportam a nossa existência – o funcionamento das mentes, dos corpos ou das máquinas, a estrutura das sociedades e das ideias.»
É claro, a “educação pela arte” não é para produzir artistas, muito menos artistas capacitados para criar coisas novas. Será, contudo, possível uma pedagogia crítica das formas e soluções do passado e das existentes, assim como das possibilidades de uso de antigos e novos meios conjugadas com o conhecimento dos problemas da realidade e com o autoconhecimento. Essa pedagogia crítica potenciaria a aptidão para trabalhar inventivamente, estando orientada para a consciencialização activa da inutilidade e da falta de sentido de repetir o já feito. Com isso, obrar-se-ia o aparecimento de novas ligações ou redes neurofisiológicas, psíquicas e culturais.
Esclareçamos, quanto ao enquadramento filosófico de muitos dos mentores das pedagogias activas, e a fim de mostrar a possibilidade duma alternativa igualmente activa mas de base materialista, que o primeiro da linhagem dos grandes pedagogos modernos desta corrente, conjugando, o que não foi o caso de Rousseau, teoria e prática, terá sido Johann Pestalozzi.
Este, de formação profundamente religiosa, deixou um testamento marcante (O Canto do Cisne, 1826), cujas ideias de base se podem rever, mutatis mutandis, em Froebel, Maria Montessori, John Dewey, Rudolf Steiner, Carl Rogers, etc., que dominaram a vanguarda educativa de via idealista antes do posterior embate – ainda actual – quer com a linha empirista-comportamentalista e pragmática da taxonomia deBloom, quer com a linha cognitivista, neokantiana, de Ausubele dos seu continuadores, para a qual aprender é sobretudo um acto de compreensão e não de dialéctica acção-conhecimento.
Com efeito, para um Pestalozzi – e é por esta via religiosa que a pedagogia activa emerge no panorama educativo – o homem é espírito, Geist, mas não começa por ser um espírito consciente de si (à maneira de Hegel!), precisa de fazer um percurso que é a marcha da própria natureza nele, desenvolvendo-se nas suas leis imutáveis em três aspectos e momentos correspondentes à “mão” ou ao “poder fazer”, à “cabeça” ou à passagem “das impressões sensíveis confusas aos conceitos claros”, e ao “coração” ou ao “querer”.
Toda a aprendizagem passa pelas impressões, expressões e formas mais elementares, que se complexificam pelos problemas que a resolução das dificuldades mais simples tornam possível levantar, e pela necessidade criada pelo estímulo aos alunos para se colocarem em situações de desafio. Um processo que conduz à génese inicial e à complicação progressiva das noções de forma, de palavra e de número, retornando constantemente aos elementos de base da aprendizagem para se reactivar a intensidade e a reapropriação do saber, na medida em que o objectivo da educação é o de reforçar de maneira constante a virtude natural do homem para aprender, consolidando com isso ao mesmo tempo as capacidades autónomas das criança, colocadas, como dissemos, em posição de acção, de iniciativa, de criação.
Mas se estes princípios gerais constituem um significativoavanço na história da pedagogia, os seus fundamentos filosóficos confundiram o idealismo organicista e o misticismo germânico tradicional, anti-racionalista, contradizendo mesmo aqueles elementos pedagógicos.
Sem dúvida que o seu pressuposto é o de um espírito que se desenvolve em nós através da acção espontânea. Mas, por isso mesmo, o fim último desta pedagogia é a da iluminação religiosa do indivíduo (tal como actualmente poderia ser o da sua eficiência técnico-instrumental e empresarial, que, ao contrário do que foi por vezes aventado, nem Diderot nem Condorcet teriam subscrito).
Há portanto aqui um finalismo formativo que deixa muito a desejar quanto à liberdade por ela propalada.
“Amor e Fé”, tal era a mensagem de Pestalozzi, como de muitos que o seguiram e de outros que na verdade o precederam, como os pietistas do instituto de Francke em Halle, na tradição da educação cristã pelo trabalho.
Ora, para o cristianismo, o trabalho e a aprendizagem activa pela prática material é apenas um meio de salvação, afastando a ociosidade pecaminosa e aproximando de Deus pela experiência do fardo da necessidade como penalização do pecado original e pelo desenvolvimento a partir da sensibilidade – como na ascese platónica – do conhecimento racional do sagrado.
Não procura a emancipação do fanatismo supersticioso pelo reconhecimento da verdadeira natureza humana, que Diderotpugnava com as suas Luzes.
Não foi por acaso que Pestalozzi repetiu de algum modo na prática da educação do seu filho o método romanceado de Rousseau, tendo nisso fatalmente fracassado. Aplicando à letra o Émile, procurando, através duma oposição educativa freudiana avant-la-lettre de conflito pai-filho – análoga à relação professor-aluno –, e numa combinação explosiva de livre-arbítrio antropológico e de determinismo teológico – antinomia fundamental do cristianismo –, consolidar a capacidade de autonomia natural da sua criança na identificação com o respeito pela lei sobrenatural, Pestalozzideixa-a entregue ao movimento livre da natureza, confrontando-a de seguida com a sua vontade de educador, como com a suprema divindade moral, o superego freudiano.
Como um Kant pedagogo, almejava formar no seu filho Jakob a prática duma liberdade querida sob a lei, suporte da liberdade vivida na natureza. Só que estes dois movimentos, na relação pai-filho, anulam-se em termos de educação, separam o educando do educador, e o resultado foi Jakob ter sido confiado a uma família amiga.
É uma contradição pedagógica que ainda agora se mantém, implementada pela ideologia e pelos poderes vigentes, embora sob um modo laico.
Esta linha educativa está pois bem longe do que poderia ter sido a de Diderot, se ele a tivesse desenrolado, se na França do despotismo tivesse havido condições que o permitissem. Pois tudo começa em Diderot pela Natureza e não por Deus.
Ora, a fim de dissipar equívocos que se podem espalhar pela comparação entre o que aqui foi dito sobre a pedagogia emDiderot e a sua teoria e prática actuais, permita-se-nos esta nota algo extensa.
É preciso dizer que a expressão geral dominante da chamada pedagogia activa não recebe, nem pouco mais ou menos, a sua inspiração de Diderot e que até nem tem muito a ver com uma ideia naturalista do homem. Dizer-se-á em contrapartida, embora cautelosamente, que o seu contemporâneo e grande filósofo Jean-Jacques Rousseau inaugura a era da pedagogia moderna, se a entendemos como actividade formativa que privilegia a acção prática, em detrimento dum ensino escolástico-humanista, aristocrático, livresco e de assimilação passiva, que ignorava os processos de autodescoberta de conteúdos e do auto-reconhecimento dos métodos deaprendizagem.
Todavia, em contrapartida, Rousseau não seguiu o ideário do progresso humano e social pela propagação da ciência e da técnica que os mentores das Luzes se empenharam em teorizar e difundir, nomeadamente através da Encyclopédie Raizonée des Sciences et des Arts, dirigida por Diderot e D’Alembert e que teve em Condorcet um colaborador que veio a ser membro destacado do Comité para a Instrução Pública durante a Revolução Francesa e um marco na história da teoria democrática, socializante e modernamente humanista da educação.
Pelo contrário – o que ficará como marca indelével nas gerações seguintes, até aos nossos dias, dos augures originários da pedagogia activa, que, desiludidos do mundo, espectavam belos futuros do desenvolvimento espontâneo da naturalidade das crianças –, Rousseau tem em mente, de modo implícito, a distinção entre o que podemos actualmente chamar de ensino e de educação (formation, Bildung como serão os romances de auto-aprendizagem dos protagonistas desenraizados, compensando a infelicidade com o descontentamento, de Goethe). Mas já não o teriam pensado mesmo os mais progressistas das Luzes como Diderot e Condorcet?
Em oposição ao pensamento dominante das Luzes, o autor do Émile respondeu num concurso coroado pela Academia de Dijon em 1750 que o desenvolvimento das ciências e das técnicas nem faz a felicidade dos homens nem a sua bondade. É precisamente o contrário o que sucede, diz ele, tendo em vista uma educação mais moral do que técnico-científica: não há uma ciência ou uma técnica que não deva o seu nascimento aos nosso vícios, reforçando além disso os poderes dos indivíduos uns sobre os outros em vez de fazer renascer, com outras aptidões, a liberdade originária do homem.
O corolário da sua tese – mais ou menos partilhada por muitos dos futuros teóricos e práticos das pedagogias activas – é a de que a moralidade é de uma ordem diferente da ciência, que os pensadores das Luzes – Diderot incluído – não haviam compreendido suficientemente. Daí a sua permanente desconfiança face aos professores, que se transmite à “escola nova”, a qual pretenderá transformar – qualquer que seja o nível académico – em “facilitadores” da aprendizagem e não em orientadores e explicadores do conhecimento.
É fácil compreender as virtudes e os defeitos, e as contradições, de tal concepção, que nunca poderia ser a de um avisado Diderot, para o qual tanto a hereditariedade quanto a escolaridade e a educação em geral apresentam limites e simbioses recíprocos e para quem uma criança, como ser vivo, na sua unicidade fisiológica, se forma espontâneamente mas dentro duma sociedade que lhe fornece os seus instrumentos e os seus materiais de autoconstrução.
É, pois, nestes termos que a arte também deve entrar na formação humana, não só na esfera escolar como sobretudo no convívio social, enquanto suprema actividade que, na sua vocação de representar os caracteres universais do homem, contribui de maneira inestimável para o desenvolver das mais variadas e particulares capacidades cognitivas e criativas, sempre integradas num todo de relações universais, que lhes proporcionam compreensão explicativa e crítica e lhes conferem sentido vital.
Tal como no seu tempo, também agora a arte, como mostra Diderot, tem o seu lugar num programa materialista humanista de formação humana, cuja escolha portanto não se resume à alternativa entre a pedagogia activa fundada num pedocentrismo místico e utópico (idealismo) e a centrada no treinamento operacional e cognitivo virado para as necessidades do mercado (positivismo).




As correntes da pedagogia contemporânea, genericamente designada por “escola nova”, nas suas múltiplas e pluralistas abordagens, e não indo muito para trás de meados do século XIX, ultrapassaram o naturalismo das Luzes do século XVIII (a corrente filosófica moderna que melhor viu o problema da educação enquanto determinante no desenvolvimento do indivíduo e no progresso social), de que um dos principais representantes e interessados no processo educativo fora Diderot, injustamente esquecido quanto ao seu papel na origem da pedagogia dos nossos tempos. Ficou lembrado bastante mais, e com plena justiça, aliás, o romantismo naturalista, afectivo e anti-intelectualista de Rousseau, pelas suas marcas deixadas na pedagogia contemporânea, em particular no que toca ao seu pendor pedocêntrico.
A chamada “escola nova”, na sua diversidade de atitudes pedagógicas e filosóficas, partiu-se todavia muito cedo em duas posições relativamente opostas (opostas doutrinariamente, mas apenas relativamente nos seus métodos): a que se fundava em concepções materialistas mas já dialécticas, embora na maior parte dos casos mal compreendidas (FreinetMakarenko), e a que, percorrendo um caminho ambíguo (em simultâneo implementador das potencialidades e da criatividade e direccionador para visões de algum modo místicas – FroebelMontessori), calcorreou portanto vias idealistas.
Essas vias idealistas estavam fundidas com um biologismo seja vitalista criacionista com harmonia cognitiva pré-estabelecida, seja préformista com actualização de estruturas cognitivas virtuais ou latentes, seja emergentista com aparição de estruturas cognitivas novas irredutíveis às anteriores.
São inegáveis alguns predicados defendidos e praticados pela “escola nova”: uma real revolução contra a docência escolástica que tinha por objectivo a reprodução das mesmas classes de homens, a mesma ideologia política e religiosa, a perpetuação do modus vivendi et operandi adequado às relações de poder e ao fixismo das classes dominantes das épocas de estagnação, embora sempre combatidas por dentro devido às contradições sociais inerentes à própria necessidade de perpetuação do estado de coisas social. Contudo, precisamos de afirmar aqui bem claro que a génese e a diversidade de perspectivas em que o novo ensino se fragmentou tem – embora não posamos tomar em detalhe tal problemática nestas páginas –, além do reconhecimento devido pelos avanços oferecidos por ele à formação humana, por força de nos tornar cautelosos, ainda nos nosso tempos, quanto às ideias que faz passar e se tentam por esse meio institucionalizar-se.
Com efeito, a “escola nova” colocou pela primeira vez na época contemporânea a arte, o artesanato, a técnica, ao serviço da formação do homem desde a infância. Remotamente inspirada num certa visão das oficinas renascentistas, já visionadas por Diderot e actualizadas por este nas belas estampas de práticas industriais da Encyclopédie, desenvolveu doutrinas e técnicas com o fito de harmonizarem o belo e o trabalho na pessoa do seu agente criador, em especial na criança, colocada no centro do seu ensino.
Para que se entenda a complexidade, a ambiguidade e os equívocos – verdadeiramente trágicos – que encobre e despoleta a ideia simples e auto-evidente, talvez não só para os paladinos duma liberdade utópica, de que uma criança aprende mais e melhor se puder ter a liberdade de formar progressivamente, pela sua tendência espontânea, uma imagem integrada e integrante do seu mundo com as peças físicas e mentais que vai descobrindo e compondo – com o que está para sair da actividade livre da criança estimulada pelos desafios do mestre ou apenas pelos meios que este lhes deixa à disposição… Para que se entenda, como dizíamos, a dificuldade e confusão ideológica e técnica de fazer da aprendizagem uma construção estética da realidade, façamos um muito breve excurso sobre a “escola nova”, começando por lembrar algo de muito significativo a respeito das suas vagas mas poderosas inspirações.
Com efeito, um dos mais proeminentes doutrinadores da “educação pela arte” e inspirador de pedagogos de grande influência tais como Carl Rogers, Herbert Read e outros, fora um místico cristão.
Trata-se (permita-se-nos esta continuada perífrase) de Martin Buber, que lançou em 1923 o seu Eu e Tu que, de um ponto-de-vista metafísico, constituiu uma resposta ao projecto nascente de eliminação do outro pelo nazismo e à convicção do sionismo judaico que pretendia afirmar a sua identidade pelo separatismo, e que mais tarde publicou O Problema do Homem (1948), apresentando o ser humano como unidade corpo-alma, a pessoa como unidade de pensamento, palavra e acção, indicando que o problema é a unidade da própria pessoa, que pode levar a uma transformação em termos da unidade em si e entre as pessoas, pois a unidade própria de cada um compreende o “tu” como momento do todo do “eu”. Esse caminho é iniciado a partir do íntimo, a autenticidade supondo que ninguém pode dizer como percorrê-lo pois o que se trata é de descobrir-se a si mesmo como algo que nunca existiu e que só pode existir num percurso orgânico que só se realiza através de obras unitárias, gerando estas a unidade da unicidade do sujeito. Ora, o homem pode auto-unificar-se porque no mais íntimo da sua alma-corpo subjaze a força divina, o telos como o sentido autêntico da vida.
Está aqui implícita a ideia, muito cara a uma das correntes mais influentes da pedagogia actual, todavia ecléctica e talvez por isso sem nome, mas quase omnipenetrante, de que a criança e o adolescente devem ser estimulados a explorar e aprender por si mesmos quem são e o que é o mundo, a escola disponibilizando meios para esse progresso.
É pois uma forte corrente que acredita que o professor, mais do que ensinar, deve fomentar a autonomia na aprendizagem incentivando e sugerindo quando muito a exploração dos objectos, dos mecanismos, da organização do raciocínio e da integração de todos estes aspectos da actividade humana.
Claro que a ideia da arte na escola como expressão criadora difusa tem uma origem muito anterior – já com Platão há vinte e cinco séculos.
Na época contemporâneaFroebel, que abria em 1837 o primeiro jardim de infância, reformula a educação apresentando como essência da sua pedagogia a liberdade e a actividade. Foi um dos primeiros, senão o primeiro, dos educadores a levar o brinquedo para a escola, centrando o ensino na actividade lúdica, orientada para a espontaneidadeda aprendizagem, idealizando recursos sistematizados para as crianças se expressarem: blocos de construção e outros materiais que eram utilizados pelas crianças nas suas actividades criativas que simultâneamente desenvolviam a aptidão motora, de manipulação de raciocínio.
Sobretudo, o desenho e as práticas que envolvem o movimento e os ritmos eram para ele muitos importantes. Para a criança se conhecer, o primeiro passo seria chamar a atenção para os membros do seu próprio corpo, depois chegar aos movimentos das partes do corpo. Em A Educação do Homem (1826), escreve que a educação é o processo pelo qual o indivíduo se desenvolve com todos os seus poderes funcionando completa e harmoniosamente. O seu princípio, fundamentado por sua vez na unidade em Deus, é o da “parte-todo”, quanto no que toca na relação entre os objectos e os processos da aprendizagem quanto no respeitante às relações entre os homens.
Com o seu livro reactualiza as teses fundamentais que hão-de nortear a “escola nova” – aprofundada e praticada por personagens tão díspares nas suas raízes e intenções filosóficas, religiosas e políticas, como Maria MontessoriCélestin Freinet e Georg Steiner: a educação deve basear-se na evolução natural das actividades da criança, o objectivo do ensino é sempre extrair mais do homem do que colocar dentro dele – conceito que teve interpretações divergentes, algumas delas refreadoras do progresso da aprendizagem –, o verdadeiro desenvolvimento advém das actividades espontâneas. Teses a ter em grande conta para jardins-de-infância e escolas primárias, assim como magnífica atitude ou disposição pedagógica geral para a autonomia verdadeira e portanto sustentada no conhecimento acumulado da Humanidade, mas que todavia foram sendo generalizadas àaprendizagem de todas as matérias, por mais complexas e nada espontâneas que sejam.
Foi contudo apenas com o Modernismo artístico que a ideia de arte na escola alcançou o reconhecimento que a época individualista e criativa lhe devia, tendo como patronos Franz Cizek, artista do Movimento de Secessão de Viena, Viktor Lowenfeld e Herbert Read, que, para teorizarem sobre a relação entre Arte e Educação, no sentido mais vasto do termo, recorreram, o primeiro a Freud, os outros dois a Jung, o psicanalista místico, influenciado pelo Tai-Ki-Tôu chinês, do Jing e do Yang, e que não se afasta substancialmente das Ideias platónicas, penetradas agora de um aspecto afectivo.
Estes autores basearam por isso as suas convicções estéticas e pedagógicas em princípios impossíveis de qualquer controlo objectivo.
Ora, o movimento que teorizou e praticou a interligação entre arte e vida mais aproximável ao ideário de um dos grandes precursores relativamente esquecidos Diderot da pedagogia moderna – com as normais diferenças que os tempos implicam – terá sido talvez o Modernismo da Bauhaus (Weimar-Dessau, 1919-32, encerrada pelo nazismo). A ideia de ensino como processo criador de problemas e da sua resolução associado à produção de soluções para a vida humana e para a sociedade terá sido sistematizada nesta escola pela primeira vez. Com certeza, a actividade daBauhaus destinava-se aos jovens, dotados já de raciocínio hipotético-dedutivo, de capacidades verdadeiramente inventivas, e não às crianças de tenra idade. Concertezaigualmente que a sua prática não esteve sempre isenta de pressupostos místicos. Mas os resultados inventivos do seu ensino, embora cabíveis no sonho de Diderot, ultrapassaram o que poderia ser teorizado pelo seu ponto-de-partida fisiológico.
Sem dúvida, com já fizemos notar, que há uma ligação, indirecta com certeza, entre a opinião de Diderot sobre a arte como pedagogia e algumas das várias correntes educativas e políticas que no século XX se empenharam em fazer da arte uma técnica de progresso operacional e ideológico das crianças e jovens. Esse progresso foi, como estamos vendo, entendido distintamente segundo o pensamento e a orientação pedagógica e política dos mentores das diversas escolas que perfilharam a ideia de aprendizagem como formação, no sentido mais amplo do termo, incluindo o estético.
Repare-se no entanto que a “escola nova” e a função que Diderot esperava para a arte partem de uma tese semelhante, embora com fundamentos na maior parte dos casos opostos: a arte como percepção e recriação de relações reais. Na verdade a ideia de uma autêntica actividade de criação é inexistente em ambas, talvez à excepção da escola deFreinet, e ainda assim com limites. Só existiu de facto e foi teorizada pela Bauhaus.
Assim, estas novas pedagogias, junto com a sua visão pedagógica da arte, usada por certas variantes delas como modelo de ensino, só coincide parcialmente, por diversas razões, com o que é possível encontrar nas ideias de Diderot.
A ideia de Diderot nunca foi a de tornar a arte o modelo da educação – o que remeteria para uma concepção estética, holista, do homem e não fisiológica, como a pugnada por ele – mas um caso exemplar no curriculum duma educação que deveria integrar tanto o saber como o fazer.
Em todo o caso devemos levar em conta o que afirma um dos principais esteios dos que pugnaram no século XX pelo reforço da educação artística nos currículos escolares e que aplicou a Teoria da Gestalt aos problemas da estética e do seu papel fundamental no ensino, Rudolf Arnheim, embora este exija alguma contenção àqueles para quem, pedagogicamente, com a subsequente extensão a todas as formas objectivas da actividade social, tudo é arte, defende o papel crucial da actividade plástica na educação:
«A experiência prática é melhor provida pelo trabalho nas artes. Não é, todavia, boa estratégia etiquetar a sensibilidade perceptual de artística ou estética porque tal significa removê-la para um domínio privilegiado, reservado para os talentos e aspirações do especialista. O pensamento visual apela, mais amplamente, à habilidade para ver formas visuais como imagens de padrões de forças que suportam a nossa existência – o funcionamento das mentes, dos corpos ou das máquinas, a estrutura das sociedades e das ideias.»
É claro, a “educação pela arte” não é para produzir artistas, muito menos artistas capacitados para criar coisas novas. Será, contudo, possível uma pedagogia crítica das formas e soluções do passado e das existentes, assim como das possibilidades de uso de antigos e novos meios conjugadas com o conhecimento dos problemas da realidade e com o autoconhecimento. Essa pedagogia crítica potenciaria a aptidão para trabalhar inventivamente, estando orientada para a consciencialização activa da inutilidade e da falta de sentido de repetir o já feito. Com isso, obrar-se-ia o aparecimento de novas ligações ou redes neurofisiológicas, psíquicas e culturais.
Esclareçamos, quanto ao enquadramento filosófico de muitos dos mentores das pedagogias activas, e a fim de mostrar a possibilidade duma alternativa igualmente activa mas de base materialista, que o primeiro da linhagem dos grandes pedagogos modernos desta corrente, conjugando, o que não foi o caso de Rousseau, teoria e prática, terá sido Johann Pestalozzi.
Este, de formação profundamente religiosa, deixou um testamento marcante (O Canto do Cisne, 1826), cujas ideias de base se podem rever, mutatis mutandis, em Froebel, Maria Montessori, John Dewey, Rudolf Steiner, Carl Rogers, etc., que dominaram a vanguarda educativa de via idealista antes do posterior embate – ainda actual – quer com a linha empirista-comportamentalista e pragmática da taxonomia deBloom, quer com a linha cognitivista, neokantiana, de Ausubele dos seu continuadores, para a qual aprender é sobretudo um acto de compreensão e não de dialéctica acção-conhecimento.
Com efeito, para um Pestalozzi – e é por esta via religiosa que a pedagogia activa emerge no panorama educativo – o homem é espírito, Geist, mas não começa por ser um espírito consciente de si (à maneira de Hegel!), precisa de fazer um percurso que é a marcha da própria natureza nele, desenvolvendo-se nas suas leis imutáveis em três aspectos e momentos correspondentes à “mão” ou ao “poder fazer”, à “cabeça” ou à passagem “das impressões sensíveis confusas aos conceitos claros”, e ao “coração” ou ao “querer”.
Toda a aprendizagem passa pelas impressões, expressões e formas mais elementares, que se complexificam pelos problemas que a resolução das dificuldades mais simples tornam possível levantar, e pela necessidade criada pelo estímulo aos alunos para se colocarem em situações de desafio. Um processo que conduz à génese inicial e à complicação progressiva das noções de forma, de palavra e de número, retornando constantemente aos elementos de base da aprendizagem para se reactivar a intensidade e a reapropriação do saber, na medida em que o objectivo da educação é o de reforçar de maneira constante a virtude natural do homem para aprender, consolidando com isso ao mesmo tempo as capacidades autónomas das criança, colocadas, como dissemos, em posição de acção, de iniciativa, de criação.
Mas se estes princípios gerais constituem um significativoavanço na história da pedagogia, os seus fundamentos filosóficos confundiram o idealismo organicista e o misticismo germânico tradicional, anti-racionalista, contradizendo mesmo aqueles elementos pedagógicos.
Sem dúvida que o seu pressuposto é o de um espírito que se desenvolve em nós através da acção espontânea. Mas, por isso mesmo, o fim último desta pedagogia é a da iluminação religiosa do indivíduo (tal como actualmente poderia ser o da sua eficiência técnico-instrumental e empresarial, que, ao contrário do que foi por vezes aventado, nem Diderot nem Condorcet teriam subscrito).
Há portanto aqui um finalismo formativo que deixa muito a desejar quanto à liberdade por ela propalada.
“Amor e Fé”, tal era a mensagem de Pestalozzi, como de muitos que o seguiram e de outros que na verdade o precederam, como os pietistas do instituto de Francke em Halle, na tradição da educação cristã pelo trabalho.
Ora, para o cristianismo, o trabalho e a aprendizagem activa pela prática material é apenas um meio de salvação, afastando a ociosidade pecaminosa e aproximando de Deus pela experiência do fardo da necessidade como penalização do pecado original e pelo desenvolvimento a partir da sensibilidade – como na ascese platónica – do conhecimento racional do sagrado.
Não procura a emancipação do fanatismo supersticioso pelo reconhecimento da verdadeira natureza humana, que Diderotpugnava com as suas Luzes.
Não foi por acaso que Pestalozzi repetiu de algum modo na prática da educação do seu filho o método romanceado de Rousseau, tendo nisso fatalmente fracassado. Aplicando à letra o Émile, procurando, através duma oposição educativa freudiana avant-la-lettre de conflito pai-filho – análoga à relação professor-aluno –, e numa combinação explosiva de livre-arbítrio antropológico e de determinismo teológico – antinomia fundamental do cristianismo –, consolidar a capacidade de autonomia natural da sua criança na identificação com o respeito pela lei sobrenatural, Pestalozzideixa-a entregue ao movimento livre da natureza, confrontando-a de seguida com a sua vontade de educador, como com a suprema divindade moral, o superego freudiano.
Como um Kant pedagogo, almejava formar no seu filho Jakob a prática duma liberdade querida sob a lei, suporte da liberdade vivida na natureza. Só que estes dois movimentos, na relação pai-filho, anulam-se em termos de educação, separam o educando do educador, e o resultado foi Jakob ter sido confiado a uma família amiga.
É uma contradição pedagógica que ainda agora se mantém, implementada pela ideologia e pelos poderes vigentes, embora sob um modo laico.
Esta linha educativa está pois bem longe do que poderia ter sido a de Diderot, se ele a tivesse desenrolado, se na França do despotismo tivesse havido condições que o permitissem. Pois tudo começa em Diderot pela Natureza e não por Deus.
Ora, a fim de dissipar equívocos que se podem espalhar pela comparação entre o que aqui foi dito sobre a pedagogia emDiderot e a sua teoria e prática actuais, permita-se-nos esta nota algo extensa.
É preciso dizer que a expressão geral dominante da chamada pedagogia activa não recebe, nem pouco mais ou menos, a sua inspiração de Diderot e que até nem tem muito a ver com uma ideia naturalista do homem. Dizer-se-á em contrapartida, embora cautelosamente, que o seu contemporâneo e grande filósofo Jean-Jacques Rousseau inaugura a era da pedagogia moderna, se a entendemos como actividade formativa que privilegia a acção prática, em detrimento dum ensino escolástico-humanista, aristocrático, livresco e de assimilação passiva, que ignorava os processos de autodescoberta de conteúdos e do auto-reconhecimento dos métodos deaprendizagem.
Todavia, em contrapartida, Rousseau não seguiu o ideário do progresso humano e social pela propagação da ciência e da técnica que os mentores das Luzes se empenharam em teorizar e difundir, nomeadamente através da Encyclopédie Raizonée des Sciences et des Arts, dirigida por Diderot e D’Alembert e que teve em Condorcet um colaborador que veio a ser membro destacado do Comité para a Instrução Pública durante a Revolução Francesa e um marco na história da teoria democrática, socializante e modernamente humanista da educação.
Pelo contrário – o que ficará como marca indelével nas gerações seguintes, até aos nossos dias, dos augures originários da pedagogia activa, que, desiludidos do mundo, espectavam belos futuros do desenvolvimento espontâneo da naturalidade das crianças –, Rousseau tem em mente, de modo implícito, a distinção entre o que podemos actualmente chamar de ensino e de educação (formation, Bildung como serão os romances de auto-aprendizagem dos protagonistas desenraizados, compensando a infelicidade com o descontentamento, de Goethe). Mas já não o teriam pensado mesmo os mais progressistas das Luzes como Diderot e Condorcet?
Em oposição ao pensamento dominante das Luzes, o autor do Émile respondeu num concurso coroado pela Academia de Dijon em 1750 que o desenvolvimento das ciências e das técnicas nem faz a felicidade dos homens nem a sua bondade. É precisamente o contrário o que sucede, diz ele, tendo em vista uma educação mais moral do que técnico-científica: não há uma ciência ou uma técnica que não deva o seu nascimento aos nosso vícios, reforçando além disso os poderes dos indivíduos uns sobre os outros em vez de fazer renascer, com outras aptidões, a liberdade originária do homem.
O corolário da sua tese – mais ou menos partilhada por muitos dos futuros teóricos e práticos das pedagogias activas – é a de que a moralidade é de uma ordem diferente da ciência, que os pensadores das Luzes – Diderot incluído – não haviam compreendido suficientemente. Daí a sua permanente desconfiança face aos professores, que se transmite à “escola nova”, a qual pretenderá transformar – qualquer que seja o nível académico – em “facilitadores” da aprendizagem e não em orientadores e explicadores do conhecimento.
É fácil compreender as virtudes e os defeitos, e as contradições, de tal concepção, que nunca poderia ser a de um avisado Diderot, para o qual tanto a hereditariedade quanto a escolaridade e a educação em geral apresentam limites e simbioses recíprocos e para quem uma criança, como ser vivo, na sua unicidade fisiológica, se forma espontâneamente mas dentro duma sociedade que lhe fornece os seus instrumentos e os seus materiais de autoconstrução.
É, pois, nestes termos que a arte também deve entrar na formação humana, não só na esfera escolar como sobretudo no convívio social, enquanto suprema actividade que, na sua vocação de representar os caracteres universais do homem, contribui de maneira inestimável para o desenvolver das mais variadas e particulares capacidades cognitivas e criativas, sempre integradas num todo de relações universais, que lhes proporcionam compreensão explicativa e crítica e lhes conferem sentido vital.
Tal como no seu tempo, também agora a arte, como mostra Diderot, tem o seu lugar num programa materialista humanista de formação humana, cuja escolha portanto não se resume à alternativa entre a pedagogia activa fundada num pedocentrismo místico e utópico (idealismo) e a centrada no treinamento operacional e cognitivo virado para as necessidades do mercado (positivismo).




As correntes da pedagogia contemporânea, genericamente designada por “escola nova”, nas suas múltiplas e pluralistas abordagens, e não indo muito para trás de meados do século XIX, ultrapassaram o naturalismo das Luzes do século XVIII (a corrente filosófica moderna que melhor viu o problema da educação enquanto determinante no desenvolvimento do indivíduo e no progresso social), de que um dos principais representantes e interessados no processo educativo fora Diderot, injustamente esquecido quanto ao seu papel na origem da pedagogia dos nossos tempos. Ficou lembrado bastante mais, e com plena justiça, aliás, o romantismo naturalista, afectivo e anti-intelectualista de Rousseau, pelas suas marcas deixadas na pedagogia contemporânea, em particular no que toca ao seu pendor pedocêntrico.
A chamada “escola nova”, na sua diversidade de atitudes pedagógicas e filosóficas, partiu-se todavia muito cedo em duas posições relativamente opostas (opostas doutrinariamente, mas apenas relativamente nos seus métodos): a que se fundava em concepções materialistas mas já dialécticas, embora na maior parte dos casos mal compreendidas (FreinetMakarenko), e a que, percorrendo um caminho ambíguo (em simultâneo implementador das potencialidades e da criatividade e direccionador para visões de algum modo místicas – FroebelMontessori), calcorreou portanto vias idealistas.
Essas vias idealistas estavam fundidas com um biologismo seja vitalista criacionista com harmonia cognitiva pré-estabelecida, seja préformista com actualização de estruturas cognitivas virtuais ou latentes, seja emergentista com aparição de estruturas cognitivas novas irredutíveis às anteriores.
São inegáveis alguns predicados defendidos e praticados pela “escola nova”: uma real revolução contra a docência escolástica que tinha por objectivo a reprodução das mesmas classes de homens, a mesma ideologia política e religiosa, a perpetuação do modus vivendi et operandi adequado às relações de poder e ao fixismo das classes dominantes das épocas de estagnação, embora sempre combatidas por dentro devido às contradições sociais inerentes à própria necessidade de perpetuação do estado de coisas social. Contudo, precisamos de afirmar aqui bem claro que a génese e a diversidade de perspectivas em que o novo ensino se fragmentou tem – embora não posamos tomar em detalhe tal problemática nestas páginas –, além do reconhecimento devido pelos avanços oferecidos por ele à formação humana, por força de nos tornar cautelosos, ainda nos nosso tempos, quanto às ideias que faz passar e se tentam por esse meio institucionalizar-se.
Com efeito, a “escola nova” colocou pela primeira vez na época contemporânea a arte, o artesanato, a técnica, ao serviço da formação do homem desde a infância. Remotamente inspirada num certa visão das oficinas renascentistas, já visionadas por Diderot e actualizadas por este nas belas estampas de práticas industriais da Encyclopédie, desenvolveu doutrinas e técnicas com o fito de harmonizarem o belo e o trabalho na pessoa do seu agente criador, em especial na criança, colocada no centro do seu ensino.
Para que se entenda a complexidade, a ambiguidade e os equívocos – verdadeiramente trágicos – que encobre e despoleta a ideia simples e auto-evidente, talvez não só para os paladinos duma liberdade utópica, de que uma criança aprende mais e melhor se puder ter a liberdade de formar progressivamente, pela sua tendência espontânea, uma imagem integrada e integrante do seu mundo com as peças físicas e mentais que vai descobrindo e compondo – com o que está para sair da actividade livre da criança estimulada pelos desafios do mestre ou apenas pelos meios que este lhes deixa à disposição… Para que se entenda, como dizíamos, a dificuldade e confusão ideológica e técnica de fazer da aprendizagem uma construção estética da realidade, façamos um muito breve excurso sobre a “escola nova”, começando por lembrar algo de muito significativo a respeito das suas vagas mas poderosas inspirações.
Com efeito, um dos mais proeminentes doutrinadores da “educação pela arte” e inspirador de pedagogos de grande influência tais como Carl Rogers, Herbert Read e outros, fora um místico cristão.
Trata-se (permita-se-nos esta continuada perífrase) de Martin Buber, que lançou em 1923 o seu Eu e Tu que, de um ponto-de-vista metafísico, constituiu uma resposta ao projecto nascente de eliminação do outro pelo nazismo e à convicção do sionismo judaico que pretendia afirmar a sua identidade pelo separatismo, e que mais tarde publicou O Problema do Homem (1948), apresentando o ser humano como unidade corpo-alma, a pessoa como unidade de pensamento, palavra e acção, indicando que o problema é a unidade da própria pessoa, que pode levar a uma transformação em termos da unidade em si e entre as pessoas, pois a unidade própria de cada um compreende o “tu” como momento do todo do “eu”. Esse caminho é iniciado a partir do íntimo, a autenticidade supondo que ninguém pode dizer como percorrê-lo pois o que se trata é de descobrir-se a si mesmo como algo que nunca existiu e que só pode existir num percurso orgânico que só se realiza através de obras unitárias, gerando estas a unidade da unicidade do sujeito. Ora, o homem pode auto-unificar-se porque no mais íntimo da sua alma-corpo subjaze a força divina, o telos como o sentido autêntico da vida.
Está aqui implícita a ideia, muito cara a uma das correntes mais influentes da pedagogia actual, todavia ecléctica e talvez por isso sem nome, mas quase omnipenetrante, de que a criança e o adolescente devem ser estimulados a explorar e aprender por si mesmos quem são e o que é o mundo, a escola disponibilizando meios para esse progresso.
É pois uma forte corrente que acredita que o professor, mais do que ensinar, deve fomentar a autonomia na aprendizagem incentivando e sugerindo quando muito a exploração dos objectos, dos mecanismos, da organização do raciocínio e da integração de todos estes aspectos da actividade humana.
Claro que a ideia da arte na escola como expressão criadora difusa tem uma origem muito anterior – já com Platão há vinte e cinco séculos.
Na época contemporâneaFroebel, que abria em 1837 o primeiro jardim de infância, reformula a educação apresentando como essência da sua pedagogia a liberdade e a actividade. Foi um dos primeiros, senão o primeiro, dos educadores a levar o brinquedo para a escola, centrando o ensino na actividade lúdica, orientada para a espontaneidadeda aprendizagem, idealizando recursos sistematizados para as crianças se expressarem: blocos de construção e outros materiais que eram utilizados pelas crianças nas suas actividades criativas que simultâneamente desenvolviam a aptidão motora, de manipulação de raciocínio.
Sobretudo, o desenho e as práticas que envolvem o movimento e os ritmos eram para ele muitos importantes. Para a criança se conhecer, o primeiro passo seria chamar a atenção para os membros do seu próprio corpo, depois chegar aos movimentos das partes do corpo. Em A Educação do Homem (1826), escreve que a educação é o processo pelo qual o indivíduo se desenvolve com todos os seus poderes funcionando completa e harmoniosamente. O seu princípio, fundamentado por sua vez na unidade em Deus, é o da “parte-todo”, quanto no que toca na relação entre os objectos e os processos da aprendizagem quanto no respeitante às relações entre os homens.
Com o seu livro reactualiza as teses fundamentais que hão-de nortear a “escola nova” – aprofundada e praticada por personagens tão díspares nas suas raízes e intenções filosóficas, religiosas e políticas, como Maria MontessoriCélestin Freinet e Georg Steiner: a educação deve basear-se na evolução natural das actividades da criança, o objectivo do ensino é sempre extrair mais do homem do que colocar dentro dele – conceito que teve interpretações divergentes, algumas delas refreadoras do progresso da aprendizagem –, o verdadeiro desenvolvimento advém das actividades espontâneas. Teses a ter em grande conta para jardins-de-infância e escolas primárias, assim como magnífica atitude ou disposição pedagógica geral para a autonomia verdadeira e portanto sustentada no conhecimento acumulado da Humanidade, mas que todavia foram sendo generalizadas àaprendizagem de todas as matérias, por mais complexas e nada espontâneas que sejam.
Foi contudo apenas com o Modernismo artístico que a ideia de arte na escola alcançou o reconhecimento que a época individualista e criativa lhe devia, tendo como patronos Franz Cizek, artista do Movimento de Secessão de Viena, Viktor Lowenfeld e Herbert Read, que, para teorizarem sobre a relação entre Arte e Educação, no sentido mais vasto do termo, recorreram, o primeiro a Freud, os outros dois a Jung, o psicanalista místico, influenciado pelo Tai-Ki-Tôu chinês, do Jing e do Yang, e que não se afasta substancialmente das Ideias platónicas, penetradas agora de um aspecto afectivo.
Estes autores basearam por isso as suas convicções estéticas e pedagógicas em princípios impossíveis de qualquer controlo objectivo.
Ora, o movimento que teorizou e praticou a interligação entre arte e vida mais aproximável ao ideário de um dos grandes precursores relativamente esquecidos Diderot da pedagogia moderna – com as normais diferenças que os tempos implicam – terá sido talvez o Modernismo da Bauhaus (Weimar-Dessau, 1919-32, encerrada pelo nazismo). A ideia de ensino como processo criador de problemas e da sua resolução associado à produção de soluções para a vida humana e para a sociedade terá sido sistematizada nesta escola pela primeira vez. Com certeza, a actividade daBauhaus destinava-se aos jovens, dotados já de raciocínio hipotético-dedutivo, de capacidades verdadeiramente inventivas, e não às crianças de tenra idade. Concertezaigualmente que a sua prática não esteve sempre isenta de pressupostos místicos. Mas os resultados inventivos do seu ensino, embora cabíveis no sonho de Diderot, ultrapassaram o que poderia ser teorizado pelo seu ponto-de-partida fisiológico.
Sem dúvida, com já fizemos notar, que há uma ligação, indirecta com certeza, entre a opinião de Diderot sobre a arte como pedagogia e algumas das várias correntes educativas e políticas que no século XX se empenharam em fazer da arte uma técnica de progresso operacional e ideológico das crianças e jovens. Esse progresso foi, como estamos vendo, entendido distintamente segundo o pensamento e a orientação pedagógica e política dos mentores das diversas escolas que perfilharam a ideia de aprendizagem como formação, no sentido mais amplo do termo, incluindo o estético.
Repare-se no entanto que a “escola nova” e a função que Diderot esperava para a arte partem de uma tese semelhante, embora com fundamentos na maior parte dos casos opostos: a arte como percepção e recriação de relações reais. Na verdade a ideia de uma autêntica actividade de criação é inexistente em ambas, talvez à excepção da escola deFreinet, e ainda assim com limites. Só existiu de facto e foi teorizada pela Bauhaus.
Assim, estas novas pedagogias, junto com a sua visão pedagógica da arte, usada por certas variantes delas como modelo de ensino, só coincide parcialmente, por diversas razões, com o que é possível encontrar nas ideias de Diderot.
A ideia de Diderot nunca foi a de tornar a arte o modelo da educação – o que remeteria para uma concepção estética, holista, do homem e não fisiológica, como a pugnada por ele – mas um caso exemplar no curriculum duma educação que deveria integrar tanto o saber como o fazer.
Em todo o caso devemos levar em conta o que afirma um dos principais esteios dos que pugnaram no século XX pelo reforço da educação artística nos currículos escolares e que aplicou a Teoria da Gestalt aos problemas da estética e do seu papel fundamental no ensino, Rudolf Arnheim, embora este exija alguma contenção àqueles para quem, pedagogicamente, com a subsequente extensão a todas as formas objectivas da actividade social, tudo é arte, defende o papel crucial da actividade plástica na educação:
«A experiência prática é melhor provida pelo trabalho nas artes. Não é, todavia, boa estratégia etiquetar a sensibilidade perceptual de artística ou estética porque tal significa removê-la para um domínio privilegiado, reservado para os talentos e aspirações do especialista. O pensamento visual apela, mais amplamente, à habilidade para ver formas visuais como imagens de padrões de forças que suportam a nossa existência – o funcionamento das mentes, dos corpos ou das máquinas, a estrutura das sociedades e das ideias.»
É claro, a “educação pela arte” não é para produzir artistas, muito menos artistas capacitados para criar coisas novas. Será, contudo, possível uma pedagogia crítica das formas e soluções do passado e das existentes, assim como das possibilidades de uso de antigos e novos meios conjugadas com o conhecimento dos problemas da realidade e com o autoconhecimento. Essa pedagogia crítica potenciaria a aptidão para trabalhar inventivamente, estando orientada para a consciencialização activa da inutilidade e da falta de sentido de repetir o já feito. Com isso, obrar-se-ia o aparecimento de novas ligações ou redes neurofisiológicas, psíquicas e culturais.
Esclareçamos, quanto ao enquadramento filosófico de muitos dos mentores das pedagogias activas, e a fim de mostrar a possibilidade duma alternativa igualmente activa mas de base materialista, que o primeiro da linhagem dos grandes pedagogos modernos desta corrente, conjugando, o que não foi o caso de Rousseau, teoria e prática, terá sido Johann Pestalozzi.
Este, de formação profundamente religiosa, deixou um testamento marcante (O Canto do Cisne, 1826), cujas ideias de base se podem rever, mutatis mutandis, em Froebel, Maria Montessori, John Dewey, Rudolf Steiner, Carl Rogers, etc., que dominaram a vanguarda educativa de via idealista antes do posterior embate – ainda actual – quer com a linha empirista-comportamentalista e pragmática da taxonomia deBloom, quer com a linha cognitivista, neokantiana, de Ausubele dos seu continuadores, para a qual aprender é sobretudo um acto de compreensão e não de dialéctica acção-conhecimento.
Com efeito, para um Pestalozzi – e é por esta via religiosa que a pedagogia activa emerge no panorama educativo – o homem é espírito, Geist, mas não começa por ser um espírito consciente de si (à maneira de Hegel!), precisa de fazer um percurso que é a marcha da própria natureza nele, desenvolvendo-se nas suas leis imutáveis em três aspectos e momentos correspondentes à “mão” ou ao “poder fazer”, à “cabeça” ou à passagem “das impressões sensíveis confusas aos conceitos claros”, e ao “coração” ou ao “querer”.
Toda a aprendizagem passa pelas impressões, expressões e formas mais elementares, que se complexificam pelos problemas que a resolução das dificuldades mais simples tornam possível levantar, e pela necessidade criada pelo estímulo aos alunos para se colocarem em situações de desafio. Um processo que conduz à génese inicial e à complicação progressiva das noções de forma, de palavra e de número, retornando constantemente aos elementos de base da aprendizagem para se reactivar a intensidade e a reapropriação do saber, na medida em que o objectivo da educação é o de reforçar de maneira constante a virtude natural do homem para aprender, consolidando com isso ao mesmo tempo as capacidades autónomas das criança, colocadas, como dissemos, em posição de acção, de iniciativa, de criação.
Mas se estes princípios gerais constituem um significativoavanço na história da pedagogia, os seus fundamentos filosóficos confundiram o idealismo organicista e o misticismo germânico tradicional, anti-racionalista, contradizendo mesmo aqueles elementos pedagógicos.
Sem dúvida que o seu pressuposto é o de um espírito que se desenvolve em nós através da acção espontânea. Mas, por isso mesmo, o fim último desta pedagogia é a da iluminação religiosa do indivíduo (tal como actualmente poderia ser o da sua eficiência técnico-instrumental e empresarial, que, ao contrário do que foi por vezes aventado, nem Diderot nem Condorcet teriam subscrito).
Há portanto aqui um finalismo formativo que deixa muito a desejar quanto à liberdade por ela propalada.
“Amor e Fé”, tal era a mensagem de Pestalozzi, como de muitos que o seguiram e de outros que na verdade o precederam, como os pietistas do instituto de Francke em Halle, na tradição da educação cristã pelo trabalho.
Ora, para o cristianismo, o trabalho e a aprendizagem activa pela prática material é apenas um meio de salvação, afastando a ociosidade pecaminosa e aproximando de Deus pela experiência do fardo da necessidade como penalização do pecado original e pelo desenvolvimento a partir da sensibilidade – como na ascese platónica – do conhecimento racional do sagrado.
Não procura a emancipação do fanatismo supersticioso pelo reconhecimento da verdadeira natureza humana, que Diderotpugnava com as suas Luzes.
Não foi por acaso que Pestalozzi repetiu de algum modo na prática da educação do seu filho o método romanceado de Rousseau, tendo nisso fatalmente fracassado. Aplicando à letra o Émile, procurando, através duma oposição educativa freudiana avant-la-lettre de conflito pai-filho – análoga à relação professor-aluno –, e numa combinação explosiva de livre-arbítrio antropológico e de determinismo teológico – antinomia fundamental do cristianismo –, consolidar a capacidade de autonomia natural da sua criança na identificação com o respeito pela lei sobrenatural, Pestalozzideixa-a entregue ao movimento livre da natureza, confrontando-a de seguida com a sua vontade de educador, como com a suprema divindade moral, o superego freudiano.
Como um Kant pedagogo, almejava formar no seu filho Jakob a prática duma liberdade querida sob a lei, suporte da liberdade vivida na natureza. Só que estes dois movimentos, na relação pai-filho, anulam-se em termos de educação, separam o educando do educador, e o resultado foi Jakob ter sido confiado a uma família amiga.
É uma contradição pedagógica que ainda agora se mantém, implementada pela ideologia e pelos poderes vigentes, embora sob um modo laico.
Esta linha educativa está pois bem longe do que poderia ter sido a de Diderot, se ele a tivesse desenrolado, se na França do despotismo tivesse havido condições que o permitissem. Pois tudo começa em Diderot pela Natureza e não por Deus.
Ora, a fim de dissipar equívocos que se podem espalhar pela comparação entre o que aqui foi dito sobre a pedagogia emDiderot e a sua teoria e prática actuais, permita-se-nos esta nota algo extensa.
É preciso dizer que a expressão geral dominante da chamada pedagogia activa não recebe, nem pouco mais ou menos, a sua inspiração de Diderot e que até nem tem muito a ver com uma ideia naturalista do homem. Dizer-se-á em contrapartida, embora cautelosamente, que o seu contemporâneo e grande filósofo Jean-Jacques Rousseau inaugura a era da pedagogia moderna, se a entendemos como actividade formativa que privilegia a acção prática, em detrimento dum ensino escolástico-humanista, aristocrático, livresco e de assimilação passiva, que ignorava os processos de autodescoberta de conteúdos e do auto-reconhecimento dos métodos deaprendizagem.
Todavia, em contrapartida, Rousseau não seguiu o ideário do progresso humano e social pela propagação da ciência e da técnica que os mentores das Luzes se empenharam em teorizar e difundir, nomeadamente através da Encyclopédie Raizonée des Sciences et des Arts, dirigida por Diderot e D’Alembert e que teve em Condorcet um colaborador que veio a ser membro destacado do Comité para a Instrução Pública durante a Revolução Francesa e um marco na história da teoria democrática, socializante e modernamente humanista da educação.
Pelo contrário – o que ficará como marca indelével nas gerações seguintes, até aos nossos dias, dos augures originários da pedagogia activa, que, desiludidos do mundo, espectavam belos futuros do desenvolvimento espontâneo da naturalidade das crianças –, Rousseau tem em mente, de modo implícito, a distinção entre o que podemos actualmente chamar de ensino e de educação (formation, Bildung como serão os romances de auto-aprendizagem dos protagonistas desenraizados, compensando a infelicidade com o descontentamento, de Goethe). Mas já não o teriam pensado mesmo os mais progressistas das Luzes como Diderot e Condorcet?
Em oposição ao pensamento dominante das Luzes, o autor do Émile respondeu num concurso coroado pela Academia de Dijon em 1750 que o desenvolvimento das ciências e das técnicas nem faz a felicidade dos homens nem a sua bondade. É precisamente o contrário o que sucede, diz ele, tendo em vista uma educação mais moral do que técnico-científica: não há uma ciência ou uma técnica que não deva o seu nascimento aos nosso vícios, reforçando além disso os poderes dos indivíduos uns sobre os outros em vez de fazer renascer, com outras aptidões, a liberdade originária do homem.
O corolário da sua tese – mais ou menos partilhada por muitos dos futuros teóricos e práticos das pedagogias activas – é a de que a moralidade é de uma ordem diferente da ciência, que os pensadores das Luzes – Diderot incluído – não haviam compreendido suficientemente. Daí a sua permanente desconfiança face aos professores, que se transmite à “escola nova”, a qual pretenderá transformar – qualquer que seja o nível académico – em “facilitadores” da aprendizagem e não em orientadores e explicadores do conhecimento.
É fácil compreender as virtudes e os defeitos, e as contradições, de tal concepção, que nunca poderia ser a de um avisado Diderot, para o qual tanto a hereditariedade quanto a escolaridade e a educação em geral apresentam limites e simbioses recíprocos e para quem uma criança, como ser vivo, na sua unicidade fisiológica, se forma espontâneamente mas dentro duma sociedade que lhe fornece os seus instrumentos e os seus materiais de autoconstrução.
É, pois, nestes termos que a arte também deve entrar na formação humana, não só na esfera escolar como sobretudo no convívio social, enquanto suprema actividade que, na sua vocação de representar os caracteres universais do homem, contribui de maneira inestimável para o desenvolver das mais variadas e particulares capacidades cognitivas e criativas, sempre integradas num todo de relações universais, que lhes proporcionam compreensão explicativa e crítica e lhes conferem sentido vital.
Tal como no seu tempo, também agora a arte, como mostra Diderot, tem o seu lugar num programa materialista humanista de formação humana, cuja escolha portanto não se resume à alternativa entre a pedagogia activa fundada num pedocentrismo místico e utópico (idealismo) e a centrada no treinamento operacional e cognitivo virado para as necessidades do mercado (positivismo).



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Agora que a Filosofia Analítica se tem imposto cada vez mais no ensino, fazendo dos domínios e dos temas (ética, estética, etc.) apenas pretextos para o exercício das suas técnicas logísticas, procedimentos argumentativos e reducionismo do real à forma atómica proposicional, metendo nessa matriz ‘a priori’ e especulativa, escolástica, tudo o que ao humano diz respeito, há que voltar a dizer basta! A lógica do mundo não é o mundo da lógica proposicional: ultrapassa-a e é muito mais rica e imprevisível. Colocar a lógica simbólica no pedestal do saber é voltar, na substância, mais de quinhentos anos atrás, à Idade Média, é amesquinhar o homem prendendo as suas dimensões concretas na grelha dum raciocínio elementar e totalitário. Há que perceber que a lógica simbólica, com os seus procedimentos atomísticos e finitários, não esgota (Gödel provara-o já em 1931) nem o pensamento nem a realidade e que é pelo menos preciso repensar, de espírito aberto, a lógica dialéctica, que não suprime a formal mas a subsume, e reintroduzi-la no ensino.
Por isso, para quem nunca soube o que ele era, fica aqui um sumaríssimo resumo da mesma.

MÉTODO DIALÉCTICO OU HISTÓRICO-GENÉTICO:
Surgiu com a necessidade de captar, já não as relações funcionais de fenómenos da Natureza, cujos factores independentes, conjugados numa determinada proporção e sequência, produzem sempre o mesmo efeito, com a hipotética excepção do que os astrofísicos chamam de singularidades, como os buracos negros ou os momentos iniciais da hipotética origem do nosso universo.
Leis permanentes no período de espaço-tempo estável e indefinido e relativas às suas escalas, quando aquele e estas são referidas à nossa finitude e dimensão ínfima, relações portanto repetíveis entre as mesmas grandezas, relações reversíveis no tempo supostamente irreversível: posso fazer cair a mesma pedra um número incalculável de vezes e obter sempre a lei da queda dos graves; fazendo percorrer uma corrente eléctrica na água separo-a sempre em oxigénio e hidrogénio.
Dois factores contribuíram para o surgimento de teorias da História e do devir. Primeiro, as condições das transformações históricas e sociais que aceleraram no século XIX e, segundo, as do desenvolvimento psicológico do indivíduo, mudanças essas irreversíveis e que parecem surgir duma unidade íntegra, sem factores independentes, não subsistentes por si, mas gerados numa certa forma histórica de sociedade (formação económico-social) ou numa certa idade fisiológica e psicológica.
O aparecimento da escravatura e o dinheiro, assim como os direitos humanos e o movimento de capital por acções, resultaram de alterações histórico-sociais, não se acrescentaram de fora para criar essas alterações. A capacidade de pensar abstractamente só surge, em média, por volta do 14-15 anos. Estas formações históricas ou ontogenéticas devem-se a um processo de maturação geral composto de factores interdependentes, que se interconstituem em unidades que tendem, pela acção recíproca e dependência mútua desses factores, a modificar-se, conduzindo a processos de decomposição, de ruptura ou de passagem a unidades ou estádios mais elevados ou complexos.
Por isso, Émile Jalley escreve que «O método que consiste em restituir o movimento do objecto total opõe-se, em metodologia das ciências, àquele fundado sobre a definição operacional de um conjunto restrito de variáveis independentes. O segundo método pertence a uma tradição de pensamento [que começa em Galileu] passando porDescartes e Claude Bernard, ao passo que o primeiro provém da corrente de pensamento dialéctico.» (Prefácio a Wallon, Henri, La Vie Mentale).
A realidade é concreta, mas se ela é o ponto de partida real da actividade do pensamento, enquanto este é um certo reflexo daquela, na forma de representações conceptuais, é todavia o ponto de chegada do mesmo pensamento enquanto síntese ou unidade teórica do diverso: aqui se dá o conhecimento de que os factores (não compostos por variáveis independentes) existem devido ao todo em mudança e de que o todo existe devido aos factores em mudança.
Assim, o movimento do pensar desce, por assim dizer, do concreto confuso ao abstracto resolutivo dos factores relativamente diferenciáveis, nomeadamente no seu desenvolvimento histórico (“lei do valor”, por exemplo), e ascende do abstracto ao concreto, reproduzindo o objecto na sua totalidade, dentro do possível dos conhecimentos prévios e meios da época.
Abstrair, ou analisar, significa decompor mentalmente o fenómeno ou o objecto nas suas partes, propriedades, relações internas e externas, nas fases do seu desenvolvimento, etc., como se faz, por exemplo, no estudo de um ovo, que se transforma num embrião e de seguida num feto.
Hegel, como idealista, considerava que no processo de ascensão do abstracto para o concreto o pensamento cria o próprio objecto, tal como o Espírito criaria a realidade. A lógica dialéctica de Hegel é a de uma realidade que se vai tornando cada vez mais complexa. Há nela uma identidade histórica entre ser e pensar.
Marx vê nesse movimento de análise-síntese de factores e aspectos somente a reconstituição, sempre incompleta, no pensamento do objecto na totalidade almejada das suas conexões.
A lógica de Marx considera também que a realidade se vai complexificando no tempo histórico, desde a matéria inorgânica ao reflexo consciente e aos sistemas sociais, mas, ao contrário de Hegel, não identifica o pensamento com a realidade no seu desenvolvimento: o pensamento depara-se com uma realidade já dada e independentemente dela, que precisa de analisar nos seus aspectos e reconstituir ou sintetizar o seu objecto nas conexões que o constituem, e que não são só conexões funcionais estáticas (eternas e imutáveis, o que acontece em especial na física e na química, antes da ideia de que a própria Natureza tem história) como também e sobretudo conexões que se transformam na sua acção recíproca.
Assim a reconstituição sintética do objecto é igualmente o acompanhamento das suas mudanças necessárias, da maneira como se torna num novo objecto.
O movimento do pensamento que vai do sensorial-concreto através da abstracção até ao concreto como síntese das suas determinações, é a lei do desenvolvimento do conhecimento teórico.
Mais ainda, esse movimento tem de compreender as contradições que conduzem uma unidade à sua auto-transfiguração enquanto permanência ou enquanto mudança.
Por exemplo, muito abreviadamente, para se compreender a Revolução francesa e o longo processo de consolidação do capitalismo, precisamos de dar conta: a) da contradição crescente entre as forças produtivas detidas pela burguesia e a sua situação político-legal no Antigo Regime; b) da Constituição de 1795 como um dos mecanismos legais básicos para inverter aquela situação; c) da criação inevitável de instrumentos económicos reguladores de uma economia cuja espontaneidade levaria ao caos; d) da luta da burguesia posteriormente instalada no poder contra as aspirações igualitárias dos assalariados que ela própria criou como condição da sua existência, assim como e)… de outros variadíssimos factores; w) factores todos eles relacionados e coo-determinados pelo próprio processo global concreto, individual, único e irrepetível, com relevâncias distintas.


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Agora que a Filosofia Analítica se tem imposto cada vez mais no ensino, fazendo dos domínios e dos temas (ética, estética, etc.) apenas pretextos para o exercício das suas técnicas logísticas, procedimentos argumentativos e reducionismo do real à forma atómica proposicional, metendo nessa matriz ‘a priori’ e especulativa, escolástica, tudo o que ao humano diz respeito, há que voltar a dizer basta! A lógica do mundo não é o mundo da lógica proposicional: ultrapassa-a e é muito mais rica e imprevisível. Colocar a lógica simbólica no pedestal do saber é voltar, na substância, mais de quinhentos anos atrás, à Idade Média, é amesquinhar o homem prendendo as suas dimensões concretas na grelha dum raciocínio elementar e totalitário. Há que perceber que a lógica simbólica, com os seus procedimentos atomísticos e finitários, não esgota (Gödel provara-o já em 1931) nem o pensamento nem a realidade e que é pelo menos preciso repensar, de espírito aberto, a lógica dialéctica, que não suprime a formal mas a subsume, e reintroduzi-la no ensino.
Por isso, para quem nunca soube o que ele era, fica aqui um sumaríssimo resumo da mesma.

MÉTODO DIALÉCTICO OU HISTÓRICO-GENÉTICO:
Surgiu com a necessidade de captar, já não as relações funcionais de fenómenos da Natureza, cujos factores independentes, conjugados numa determinada proporção e sequência, produzem sempre o mesmo efeito, com a hipotética excepção do que os astrofísicos chamam de singularidades, como os buracos negros ou os momentos iniciais da hipotética origem do nosso universo.
Leis permanentes no período de espaço-tempo estável e indefinido e relativas às suas escalas, quando aquele e estas são referidas à nossa finitude e dimensão ínfima, relações portanto repetíveis entre as mesmas grandezas, relações reversíveis no tempo supostamente irreversível: posso fazer cair a mesma pedra um número incalculável de vezes e obter sempre a lei da queda dos graves; fazendo percorrer uma corrente eléctrica na água separo-a sempre em oxigénio e hidrogénio.
Dois factores contribuíram para o surgimento de teorias da História e do devir. Primeiro, as condições das transformações históricas e sociais que aceleraram no século XIX e, segundo, as do desenvolvimento psicológico do indivíduo, mudanças essas irreversíveis e que parecem surgir duma unidade íntegra, sem factores independentes, não subsistentes por si, mas gerados numa certa forma histórica de sociedade (formação económico-social) ou numa certa idade fisiológica e psicológica.
O aparecimento da escravatura e o dinheiro, assim como os direitos humanos e o movimento de capital por acções, resultaram de alterações histórico-sociais, não se acrescentaram de fora para criar essas alterações. A capacidade de pensar abstractamente só surge, em média, por volta do 14-15 anos. Estas formações históricas ou ontogenéticas devem-se a um processo de maturação geral composto de factores interdependentes, que se interconstituem em unidades que tendem, pela acção recíproca e dependência mútua desses factores, a modificar-se, conduzindo a processos de decomposição, de ruptura ou de passagem a unidades ou estádios mais elevados ou complexos.
Por isso, Émile Jalley escreve que «O método que consiste em restituir o movimento do objecto total opõe-se, em metodologia das ciências, àquele fundado sobre a definição operacional de um conjunto restrito de variáveis independentes. O segundo método pertence a uma tradição de pensamento [que começa em Galileu] passando porDescartes e Claude Bernard, ao passo que o primeiro provém da corrente de pensamento dialéctico.» (Prefácio a Wallon, Henri, La Vie Mentale).
A realidade é concreta, mas se ela é o ponto de partida real da actividade do pensamento, enquanto este é um certo reflexo daquela, na forma de representações conceptuais, é todavia o ponto de chegada do mesmo pensamento enquanto síntese ou unidade teórica do diverso: aqui se dá o conhecimento de que os factores (não compostos por variáveis independentes) existem devido ao todo em mudança e de que o todo existe devido aos factores em mudança.
Assim, o movimento do pensar desce, por assim dizer, do concreto confuso ao abstracto resolutivo dos factores relativamente diferenciáveis, nomeadamente no seu desenvolvimento histórico (“lei do valor”, por exemplo), e ascende do abstracto ao concreto, reproduzindo o objecto na sua totalidade, dentro do possível dos conhecimentos prévios e meios da época.
Abstrair, ou analisar, significa decompor mentalmente o fenómeno ou o objecto nas suas partes, propriedades, relações internas e externas, nas fases do seu desenvolvimento, etc., como se faz, por exemplo, no estudo de um ovo, que se transforma num embrião e de seguida num feto.
Hegel, como idealista, considerava que no processo de ascensão do abstracto para o concreto o pensamento cria o próprio objecto, tal como o Espírito criaria a realidade. A lógica dialéctica de Hegel é a de uma realidade que se vai tornando cada vez mais complexa. Há nela uma identidade histórica entre ser e pensar.
Marx vê nesse movimento de análise-síntese de factores e aspectos somente a reconstituição, sempre incompleta, no pensamento do objecto na totalidade almejada das suas conexões.
A lógica de Marx considera também que a realidade se vai complexificando no tempo histórico, desde a matéria inorgânica ao reflexo consciente e aos sistemas sociais, mas, ao contrário de Hegel, não identifica o pensamento com a realidade no seu desenvolvimento: o pensamento depara-se com uma realidade já dada e independentemente dela, que precisa de analisar nos seus aspectos e reconstituir ou sintetizar o seu objecto nas conexões que o constituem, e que não são só conexões funcionais estáticas (eternas e imutáveis, o que acontece em especial na física e na química, antes da ideia de que a própria Natureza tem história) como também e sobretudo conexões que se transformam na sua acção recíproca.
Assim a reconstituição sintética do objecto é igualmente o acompanhamento das suas mudanças necessárias, da maneira como se torna num novo objecto.
O movimento do pensamento que vai do sensorial-concreto através da abstracção até ao concreto como síntese das suas determinações, é a lei do desenvolvimento do conhecimento teórico.
Mais ainda, esse movimento tem de compreender as contradições que conduzem uma unidade à sua auto-transfiguração enquanto permanência ou enquanto mudança.
Por exemplo, muito abreviadamente, para se compreender a Revolução francesa e o longo processo de consolidação do capitalismo, precisamos de dar conta: a) da contradição crescente entre as forças produtivas detidas pela burguesia e a sua situação político-legal no Antigo Regime; b) da Constituição de 1795 como um dos mecanismos legais básicos para inverter aquela situação; c) da criação inevitável de instrumentos económicos reguladores de uma economia cuja espontaneidade levaria ao caos; d) da luta da burguesia posteriormente instalada no poder contra as aspirações igualitárias dos assalariados que ela própria criou como condição da sua existência, assim como e)… de outros variadíssimos factores; w) factores todos eles relacionados e coo-determinados pelo próprio processo global concreto, individual, único e irrepetível, com relevâncias distintas.


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Agora que a Filosofia Analítica se tem imposto cada vez mais no ensino, fazendo dos domínios e dos temas (ética, estética, etc.) apenas pretextos para o exercício das suas técnicas logísticas, procedimentos argumentativos e reducionismo do real à forma atómica proposicional, metendo nessa matriz ‘a priori’ e especulativa, escolástica, tudo o que ao humano diz respeito, há que voltar a dizer basta! A lógica do mundo não é o mundo da lógica proposicional: ultrapassa-a e é muito mais rica e imprevisível. Colocar a lógica simbólica no pedestal do saber é voltar, na substância, mais de quinhentos anos atrás, à Idade Média, é amesquinhar o homem prendendo as suas dimensões concretas na grelha dum raciocínio elementar e totalitário. Há que perceber que a lógica simbólica, com os seus procedimentos atomísticos e finitários, não esgota (Gödel provara-o já em 1931) nem o pensamento nem a realidade e que é pelo menos preciso repensar, de espírito aberto, a lógica dialéctica, que não suprime a formal mas a subsume, e reintroduzi-la no ensino.
Por isso, para quem nunca soube o que ele era, fica aqui um sumaríssimo resumo da mesma.

MÉTODO DIALÉCTICO OU HISTÓRICO-GENÉTICO:
Surgiu com a necessidade de captar, já não as relações funcionais de fenómenos da Natureza, cujos factores independentes, conjugados numa determinada proporção e sequência, produzem sempre o mesmo efeito, com a hipotética excepção do que os astrofísicos chamam de singularidades, como os buracos negros ou os momentos iniciais da hipotética origem do nosso universo.
Leis permanentes no período de espaço-tempo estável e indefinido e relativas às suas escalas, quando aquele e estas são referidas à nossa finitude e dimensão ínfima, relações portanto repetíveis entre as mesmas grandezas, relações reversíveis no tempo supostamente irreversível: posso fazer cair a mesma pedra um número incalculável de vezes e obter sempre a lei da queda dos graves; fazendo percorrer uma corrente eléctrica na água separo-a sempre em oxigénio e hidrogénio.
Dois factores contribuíram para o surgimento de teorias da História e do devir. Primeiro, as condições das transformações históricas e sociais que aceleraram no século XIX e, segundo, as do desenvolvimento psicológico do indivíduo, mudanças essas irreversíveis e que parecem surgir duma unidade íntegra, sem factores independentes, não subsistentes por si, mas gerados numa certa forma histórica de sociedade (formação económico-social) ou numa certa idade fisiológica e psicológica.
O aparecimento da escravatura e o dinheiro, assim como os direitos humanos e o movimento de capital por acções, resultaram de alterações histórico-sociais, não se acrescentaram de fora para criar essas alterações. A capacidade de pensar abstractamente só surge, em média, por volta do 14-15 anos. Estas formações históricas ou ontogenéticas devem-se a um processo de maturação geral composto de factores interdependentes, que se interconstituem em unidades que tendem, pela acção recíproca e dependência mútua desses factores, a modificar-se, conduzindo a processos de decomposição, de ruptura ou de passagem a unidades ou estádios mais elevados ou complexos.
Por isso, Émile Jalley escreve que «O método que consiste em restituir o movimento do objecto total opõe-se, em metodologia das ciências, àquele fundado sobre a definição operacional de um conjunto restrito de variáveis independentes. O segundo método pertence a uma tradição de pensamento [que começa em Galileu] passando porDescartes e Claude Bernard, ao passo que o primeiro provém da corrente de pensamento dialéctico.» (Prefácio a Wallon, Henri, La Vie Mentale).
A realidade é concreta, mas se ela é o ponto de partida real da actividade do pensamento, enquanto este é um certo reflexo daquela, na forma de representações conceptuais, é todavia o ponto de chegada do mesmo pensamento enquanto síntese ou unidade teórica do diverso: aqui se dá o conhecimento de que os factores (não compostos por variáveis independentes) existem devido ao todo em mudança e de que o todo existe devido aos factores em mudança.
Assim, o movimento do pensar desce, por assim dizer, do concreto confuso ao abstracto resolutivo dos factores relativamente diferenciáveis, nomeadamente no seu desenvolvimento histórico (“lei do valor”, por exemplo), e ascende do abstracto ao concreto, reproduzindo o objecto na sua totalidade, dentro do possível dos conhecimentos prévios e meios da época.
Abstrair, ou analisar, significa decompor mentalmente o fenómeno ou o objecto nas suas partes, propriedades, relações internas e externas, nas fases do seu desenvolvimento, etc., como se faz, por exemplo, no estudo de um ovo, que se transforma num embrião e de seguida num feto.
Hegel, como idealista, considerava que no processo de ascensão do abstracto para o concreto o pensamento cria o próprio objecto, tal como o Espírito criaria a realidade. A lógica dialéctica de Hegel é a de uma realidade que se vai tornando cada vez mais complexa. Há nela uma identidade histórica entre ser e pensar.
Marx vê nesse movimento de análise-síntese de factores e aspectos somente a reconstituição, sempre incompleta, no pensamento do objecto na totalidade almejada das suas conexões.
A lógica de Marx considera também que a realidade se vai complexificando no tempo histórico, desde a matéria inorgânica ao reflexo consciente e aos sistemas sociais, mas, ao contrário de Hegel, não identifica o pensamento com a realidade no seu desenvolvimento: o pensamento depara-se com uma realidade já dada e independentemente dela, que precisa de analisar nos seus aspectos e reconstituir ou sintetizar o seu objecto nas conexões que o constituem, e que não são só conexões funcionais estáticas (eternas e imutáveis, o que acontece em especial na física e na química, antes da ideia de que a própria Natureza tem história) como também e sobretudo conexões que se transformam na sua acção recíproca.
Assim a reconstituição sintética do objecto é igualmente o acompanhamento das suas mudanças necessárias, da maneira como se torna num novo objecto.
O movimento do pensamento que vai do sensorial-concreto através da abstracção até ao concreto como síntese das suas determinações, é a lei do desenvolvimento do conhecimento teórico.
Mais ainda, esse movimento tem de compreender as contradições que conduzem uma unidade à sua auto-transfiguração enquanto permanência ou enquanto mudança.
Por exemplo, muito abreviadamente, para se compreender a Revolução francesa e o longo processo de consolidação do capitalismo, precisamos de dar conta: a) da contradição crescente entre as forças produtivas detidas pela burguesia e a sua situação político-legal no Antigo Regime; b) da Constituição de 1795 como um dos mecanismos legais básicos para inverter aquela situação; c) da criação inevitável de instrumentos económicos reguladores de uma economia cuja espontaneidade levaria ao caos; d) da luta da burguesia posteriormente instalada no poder contra as aspirações igualitárias dos assalariados que ela própria criou como condição da sua existência, assim como e)… de outros variadíssimos factores; w) factores todos eles relacionados e coo-determinados pelo próprio processo global concreto, individual, único e irrepetível, com relevâncias distintas.

Saramago e os Comunistas





Uma resposta a um comentário a um meu comentário lido num blogue no qual se escrevia, como em muitos textos se pode ler, que nunca se viu um comunista escusar-se de ser um proprietário e de receber mordomias. Mais coisas tem esse comentário, mas apenas o utilizo como pretexto para tentar dissipar alguns equívocos generalizados. E, assim como o comentário expressa apenas ideias espalhadas e sem proprietário original, a minha resposta nem é tanto ao comentário em si quanto a tais opiniões próprias da vulgata anti-comunista. Daí poder-se julgar não ser relevante indicar o autor desse texto. Não o creio. Por respeito pela autora, e pelo facto de o seu comentário ser público e assinado, digo ter sido postado por Carla Simões em 19 de Junho de 2010 no excelente e modelar Blogue Delito de Opinião do escritor e jornalista Pedro Correia, no qual aliás já está esta minha mesma resposta.
Tudo isto vem aliás a propósito das convicções políticas de Saramago e do seu reconhecimento de que a práxis comunista falhou, tendo acrescentado todavia que, se a sua realização não se concretizou no século XX, o ideal fica para que, em novas condições e melhor pensado, seja cumprido. Eis, pois, a minha resposta, decerto não muito aprofundada e muito pouco teórica, pelo que remeto para as obras fundamentais do marxismo, assim como para os seus mais presentes continuadores.
Em primeiro lugar, é preciso distinguir a pessoa e as suas ideias, que muitas vezes (nunca, arriscaria eu) não se confundem. 
O homem é o sujeito e a sua circunstância, no qual as duas instâncias se interpenetram e se degladiam. As circunstâncias específicas duma época obrigam o homem a agir em conformidade com elas para salvaguardar a sua própria pessoa e os seus próximos. Eu, marxista que sou, nunca abdicaria da minha propriedade privada, dos meus rendimentos, na medida em que preciso de sobreviver e de viver dignamente numa sociedade que me impõe este tipo de existência (o livre-arbítrio é uma ilusão), embora o ideário marxista nada tenha contra a propriedade individual em si mesma.
Se eu acredito, em virtude da minha experiência de vida e das leituras cuidadosamente estruturadas que tenho feito, na possibilidade duma sociedade comunista (a muito longo prazo, admito, por força da realidade), na qual as pessoas guardarão a sua propriedade pessoal, como expressão física essencial do seu ser, é porque a ideia de comunismo não admite apenas a propriedade privada dos meios de produção de bens socialmente necessários, e nada mais. E isso porque ela consiste numa privação da propriedade dos outros sobre eles, que estão cativos do direito duma minoria, criando assim muitas injustiças na distribuição e irracionalidades concorrenciais, além de formas de alienação financeira da actividade produtiva, como temos estada a verificar uma vez mais.
Mas, dado que vivo numa sociedade capitalista, muitas das actividades que posso realizar têm que ser realizadas a título de propriedade privada dos meios para tal. Não é a vontade de cada um que, por si mesma, muda o modo de produção social.
São antes as condições tecnológicas e sociais da produção que criam as condições para o transformarem, e os ideais surgem então como uma orientação teórica da prática para que tais possibilidades existentes se convertam em realidades efectivas. É isto o sentido da práxis comunista.
E José Saramago, com a sua obra literária, nada mais fez – e isso já foi imenso – do que elevar mais um degrau na tomada de consciência da necessidade e na possibilidade de realização de tal ideal igualitário. 
Mas, como de novo fez notar Saramago, o homem é um misto de ideais e de circunstâncias, de altruísmo e de egoísmo. O homem é um homem do seu tempo. 
E é nesta tomada de consciência para a qual contribuiu Saramago que nos devemos apoiar para sermos cada vez melhores, mais coerentes com os nossos ideais, e para sermos cada vez mais humanos, para que os próprios nossos ideais compreendam em si, não uma ordem arbitrária, mas aquilo que somos, podemos e desejamos vir a ser.
 
E para que saibam a que irracionalidade pode levar o ódio aos ideais comunistas, que por certo não é apenas desgosto pelos crimes cometidos em seu nome (muito haveria aliás a falar sobre isto), eis aqui uma pérola de prosa retirada de um comentário ao falecimento de Saramago no MSN, que se pode ler ainda em 21 de Junho de 2010:
«Este “ser – amargo” deveria ficar em Espanha ao lado de Franco ou dos republicanistas comunistas. Lixo como as cinzas dele não fazem falta na pátria de Viriato. Mais um imbecil com a mania que sabia escrever. Um iluminado que fugiu do verdadeiro trabalho para andar limpo e de fatinho… Um traidor que deveria ter sido fuzilado por aquilo que propunha em Espanha sobre a nossa lusa pátria. Um ser patético que deu o golpe do baú numa pseudo escritora/jornalista espanhola – um chibo com chifres… Um ser infame que deixou morrer à fome uma das suas mulheres, quando era apenas um mero mercenário do PCP e engraxava motores numa oficina qualquer. Um bandido sem qualquer pejo em despedir homens de família quando se instalou a insanidade no Jornal de Notícias em 1975. Um hipócrita que foi levado ao colo pelo PC e demais acólitos para ganhar um prémio Nobel. Nunca lhe disseram que não sabia escrever, nem pensar! Esse maníaco da prepotência e do absurdo! Já devia ter desaparecido do nosso mapa. Não faz falta nenhuma.»

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