Ao desenvolvimento social dos indivíduos corresponde a representação do “homem como ser universal”, como ser idêntico na sua essência a todos os seres da mesma espécie e livre de realizar em si os atributos doravante comuns, universais no duplo sentido da identidade dos atributos nos indivíduos e dos indivíduos nos atributos e da superação da singularidade sensível no pensar contido, ou melhor, gerado, nas relações do homem com o homem. Foi até aqui, ou quase, que Feuerbach chegou e parou, ao supor que estas universalidades intersubjectivas constituíam a essência originária do homem, enquanto Marx descobriu que elas são, não a essência, mas o resultado do desenvolvimento concreto da sociedade. Será apenas na subversão desta que se conseguirá solucionar o problema da dignidade, ou seja, da alienação. Nada de surpreendente há, assim, na postura indignada de Marx a respeito da insistência de muitos na escapatória metafísica face ao incontornável esmagamento do indivíduo pela lógica objectiva que o atormenta:
«Não nos vamos, naturalmente, dar ao trabalho de esclarecer os nossos sábios filósofos sobre o facto de que a “libertação” do “Homem” não avançou um único passo por terem resolvido a filosofia, a teologia, a substância e todo o lixo na “Consciência de si”, por terem libertado o “Homem” do domínio destas frases sob as quais ele nunca foi escravo; de que não é possível uma libertação real a não ser no mundo real e com meios reais [...] A “libertação” é um acto histórico, não um acto de pensamento, e é efectuada por relações históricas, pelo [nív]el da indústria, do com[ércio], da [agri]cultura, do inter[câmbio]…»
E, se a libertação é um acto histórico, se começa pela abolição das classes sociais, como estas resultam do nível de desenvolvimento das forças produtivas, de modo algum são as ilusões ideológicas, metafísicas, religiosas, que se encontram na base da alienação, do desapossamento social do homem da humanidade objectivada por ele próprio, ainda que representem as formas mentais dessa mesma alienação e criem nele um falso sentido da vida, suporte ético-cognitivo do anti-humanismo prático. Então o que se precisa não é por certo retornar a um imaginário “estado de natureza”, no qual o “bom selvagem” comia, com fome, por magia, “com paixão” mas sem o reconhecimento da humanidade em cada homem, a carne naturalmente humana deste. O que, na verdade, há a fazer é desenvolver a indústria e, com ela, libertar o indivíduo da pressão das necessidades materiais, que são certamente também resultado da pressão duma economia que o submete e, ao mesmo tempo, do desejo de ter para si mesmo – enquanto homem idêntico, humano, quando nem todos podem ter – os produtos e os poderes em que as aptidões humanas se vão realizando. Nos Princípios Básicos do Comunismo (1847) Engels mostra como a simples vontade nada consegue sem o poder, sem a mudança material das condições de existência. A “vontade de poder” resulta da necessidade natural-cultural que o impulsiona e lhe imprime a sua marca:
«Enquanto não puder ser produzido tanto que seja não só suficiente para todos, mas que também fique um excedente de produtos para aumento do capital social e para a formação de mais forças produtivas, terá sempre de haver uma classe dominante, dispondo das forças produtivas da sociedade, e uma classe pobre e oprimida.»
O motor da oposição entre os homens não tem nada a ver com um egoísmo inato, pré-social, que mandaria à fava, ou apaziguaria em rituais e crenças, a má consciência de terem traído a sua própria essência genérica. Foi – e deixemos de lado um aprofundamento analítico que não compete a este ensaio – a divisão do trabalho, a instalação e permanência em terras agrícolas ou de caça, as funções defensivas e ofensivas, o crescimento da população e a conquista de espaço vital, o organizar-se em estruturas sociais hierarquizadas (famílias e tribos) como modo de racionalização dos meios e de identificação afectiva intragrupal, numa estratégia/condição de subsistência, de domínio do solo, riqueza originária, gerando as primeiras formas de aglutinação ideológica; foi, pois, tudo isto que começou a fazer emergir a repartição/apropriação desigual – em função das capacidades e do acaso –, na medida em que conduziu à criação de excedente, acompanhada pela reformulação de valores e poderes (quem tem o poder exerce-o como expressão natural da sua existência, da sua identidade e diferença, fonte social/natural do egoísmo, que para ele não é egoísmo mas “direito” natural ao seu ser). Pela acumulação e o correlativo progresso das aptidões, a sociedade acaba por se elevar ao plano da sobre-vida, de vários modos de expressão, de poder e de liberdade, apenas acessíveis a alguns, em última instância por causa do fraco nível dos meios produtivos. A desigualdade entre os homens e os correlativos instrumentos de repressão e condicionamento da liberdade são explicados por Marx de acordo com a sua génese natural/social, “materialista”:
«Com a divisão do trabalho, na qual estão dadas todas estas contradições, e a qual por sua vez assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em famílias individuais e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada também a repartição, e precisamente a repartição desigual, tanto quantitativa como qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e portanto a propriedade, a qual tem já o seu embrião, a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são os escravos do homem. A escravatura latente na família, se bem que ainda muito rudimentar, é a primeira propriedade, que de resto já aqui corresponde perfeitamente à definição dos modernos economistas, segundo a qual ela é o dispor de força de trabalho [Arbeitskraft] alheia.»
Enquanto a criação da riqueza de uns continuasse a implicar a apropriação do trabalho específico dos outros, manter-se-ia a inevitabilidade da exploração, socialmente organizada e desigualmente repartida, do homem pelo homem.
Mas nenhum homem é autênticamente livre junto daqueles que não o são. É por isso que para Marx a liberdade só existiria na meta que visa a praxis comunista, naquela “idade de ouro” sem memória do medo de não se usufruir dos bens (utilitários, formativos, intelectuais, artísticos e serviços) socialmente produzidos, e da própria Natureza, na era da abundância sem limites e na qual a cobiça egoísta apenas poderia ser a manifestação duma patologia mental. Quando o homem conseguisse socializar politicamente os meios produtivos, em razão da irracionalidade concorrencial bloqueante do progresso, qualitativo e quantitativo, daqueles, tudo ficaria ao dispor de todos, a sua apropriação privada nada mais seria que uma lembrança dos livros de História.
Porém, a própria História tratou de fazer fracassar o sonho comunista. O século XX assistiu à derrocada estrondosa dum projecto por razões ainda não satisfatoriamente conhecidas. Mais do que isso: o sonho de liberdade concreta mas condicionada por valores tradicionais, pela ignorância cultural, pelo ressentimento e pelas dificuldades criadas pelos inimigos internos e externos (conduzindo à especificidade do socialismo em cada país), catapultou os sonhadores para a construção de alguns dos mais notórios regimes de incompetência económica e de terror político (muitas vezes necessário mas também exagerado) do último século, embora longe do pavor das guerras, perseguições, encarceramentos e assassínios provocados pelos regimes capitalistas. Certos governos socialistas chegaram mesmo, a pretexto da luta heróica pela igualdade, a reintroduzir uma nova espécie de escravatura, sob a forma eufémica dos “campos de trabalho” e do célebre Gulag, para delinquentes, sabotadores da propriedade social, adversários políticos activos e vítimas de paranóia e de vingança.
O marxismo provou, na prática, a importância do desenvolvimento dos meios de produção nas relações sociais, assim como da política, que por sua vez nelas interfere em função das necessidades e interesses associados àqueles desenvolvimentos técnicos e relações produtivas.
São, por isso e além disso, as condições sócio-económicas que condicionam o uso político dos ideais. O belo ideal comunista, na situação histórica em que foi tentado pôr de pé, provou-se negando-se em algumas experiências mal sucedidas para renascer no futuro com mais potencial de transformação.
Há, e ainda bem, os que insistem em realizá-lo no futuro. Mesmo reconhecendo os hediondos crimes do passado perpetrados pelos seus camaradas - muitas vezes por força das circunstâncias provocadas pelos seus inimigos e, na maioria dos casos, feitos contra estes -, os comunistas não devem ainda ignorar a enorme dificuldade que haverá em satisfazer a dignidade dos milhares de milhões de indivíduos pela apropriação igualitária dos bens do engenho humano, daquilo que é o produto do seu trabalho geral, condição sine qua non do comunismo.
Contudo, o grande obstáculo ao futuro está no presente: é de tal maneira complexa a rede de interesses diversos e contraditórios, a necessidade de assegurar o porvir competindo, estimulando a criatividade tecnológica, gerando novos postos de trabalho e eliminando antigos, expandindo o comércio, fazendo crescer a massa monetária, acumulando capital, especulando com ele, deslocando-o internacionalmente ao sabor dos movimentos dos mercados de trabalho e bolsistas, etc.; toda esta azáfama servindo, por um mecanismo objectivo de reprodução e reinvestimento do capital, as necessidades humanas que ela própria criou e de que se alimenta – eis, aparentemente imparável, um movimento em espiral, um círculo vicioso no qual o homem é ao mesmo tempo agente e instrumento.
E este homem, explorado pela transmutação das suas próprias necessidades, realiza-se também no jogo, ou aspira a usufruir, de acordo com as condições objectivas, dos valores de consumo e pelos quais ele se consome, valores do desejo, do trabalho, da carreira, da família, socialmente condicionados, e duma política que, face a forças cada vez mais autónomas, se circunscreve a horizontes pragmáticos. Submetendo-se obrigatoriamente às regras, dentro de certos parâmetros, o indivíduo médio vê no cumprimento delas uma paradoxal invenção de si mesmo que o aliena do próprio sentido, socialmente condicionado, da sua vida: pouco parece poder fazer perante um Leviathan económico cuja lógica desconhece, e ao qual tem de sacrificar os desejos mais íntimos, aqueles que fariam da existência, não um devir feito à força de dever mas algo que valeria a pena viver.
Marx e Engels num dos parágrafos de A Ideologia Alemã, denunciaram a estreiteza da existência individual na sociedade burguesa, condição, segundo eles desta mesma sociedade:
«enquanto [...] a actividade não é dividida voluntariamente, mas sim naturalmente, a própria acção do homem se torna para este um poder alheio e oposto que o subjuga, em vez de ser ele a dominá-la. É assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um círculo de actividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador ou pastor ou crítico crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência – ao passo que na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de actividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.»
Mas será possível que alguma vez, dada a elevação progressiva dos níveis de qualificação requeridos para as mais prestigiadas actividades profissionais, e até para muitas das outras, assim como a necessidade de descanso e de lazer, os homens possam, consigam ou até desejem fazer engenharia de manhã, sexo ao almoço, medicina de tarde, literatura de noite e ginástica de madrugada?
A constatação feita e a interrogação posta por Henri Lefebvre em 1962 parecem manter toda a sua actualidade, a desilusão do presente e a abertura ao futuro: «A aspiração à vida nova não teria sido uma formulação vaga e prematura da reivindicação total? Sem dúvida. A reivindicação total poderá conduzir à criação duma vida nova? Aqui está o problema.»
E é indubitável um problema que se liga ao facto de que superar teoricamente a filosofia especulativa e impotente nascida deste mundo não é superar materialmente o mundo que também fez nascer a nova, e só aparentemente moribunda, filosofia da vida efectiva.
O materialismo histórico e dialéctico não pressupõe a necessidade do socialismo e do comunismo. A suprema ironia da obra de Marx está no facto de, ao mesmo tempo que acaba logicamente com a metafísica e com a nostalgia idealista duma teleologia do sentido humano, fornecer os argumentos teóricos do seu fracasso prático e, mediante essa autocrítica, da possibilidade do seu futuro.
As questões de Henri Lefebvre parecem, pois, patéticas. E, contudo…
Os relógios inventados pelo homem marcam a hora, e as possibilidades humanas estão ao alcance da sua realização.