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Filosofia da Terra

Furar o Nevoeiro da Ideologia Burguesa. O Bem, a Verdade e o Belo - Paradigmas Unidos da Vida. Um Olhar e uma Voz Diferentes, Livres, Progressistas e Revolucionárias. Filosofia, Artes, Política, Acontecimentos, Reflexões.

Arte Filosofia Ciência – Digressões (3)



Mas a ciência, enquanto tal, não pode ser criticada do exterior, se a entendermos como obra aberta, pelos seus próprios princípios e métodos, que incluem a consideração ponderada das interpretações especulativas e o uso das mais extravagantes hipóteses, sujeitas ao escrutínio da experiência, apoiada nos recursos técnicos e teóricos disponíveis, ou, no limite, à espera do aperfeiçoamento dialéctico dos meios.
Com certeza – já o dissemos – que não devemos desqualificar por completo a especulação, como o faz o positivismo radical, pois esta pode ser estimulante e levar mesmo a investigação a reorientar-se por vias fecundas até então insuspeitas e à exigência de criar novos métodos e instrumentos de prova. Não existem critérios ‘a priori’ que definam se um problema é científico ou não.[1] Todavia, é a ciência, enquanto processo de racionalização dos problemas da existência humana e das possibilidades da sua solução – sempre imperfeita e insatisfeita consigo mesma –, que tem a última e provisória palavra no âmbito do conhecimento.
——————————————————————————–
[1] À excepção, talvez, das tautologias e dos seus opostos, os paradoxos, das questões que implicam a sua própria resposta, afirmativa ou negativa. Karl Popper (Cf. Logik der Forschung, 1934) invoca a regra da “falsificabilidade” (a probabilidade prática duma teoria ser desmentida por um facto) contra a clássica “corroboração das hipóteses”. Mas o facto é que nem todos os conhecimentos foram ou podem ser presentemente demonstrados como falsificáveis. Deixarão por isso de serem verosímeis? O “facto” não poderá ser uma “anomalia real”? Para muitas das teorias foi apenas o caso de terem sido corrigidas, aperfeiçoadas, restringidas no seu alcance, como a mecânica de Newton. Além de que nenhuma observação ou experimentação, que nos dão os “factos”, é, ‘a priori’, isenta de erros, de teorias, de limites técnicos. Uma “falsificação” pode estar viciada. Esta regra aplica-se apenas a enunciados que desde logo já se sabe não terem solução teórica, por serem falsos problemas. Por exemplo: “Deus existe ou não?” é um falso problema porque quem o enuncia define à partida Deus como uma entidade que não é passível de observação directa ou material, instrumentalmente controlada. “Deus” só pode ser caracterizado pela sua própria definição, como aliás mostram as supostas “provas da existência de Deus”, desmontadas por Kant com justeza, mas usando doutro critério, lógico, por exemplo, de que a “existência” não é atributo “real” do sujeito dum juízo. Ou seja, não se pode tirar, à maneira escolástica, a existência da essência, o ‘definiens’ (a definição, de que a “existência” faria parte) do ‘definiendum’ (o definido), pois os nossos juízos não se fundam num conhecimento verdadeiro da essência, dado que não temos acesso racional, nem intuitivo, à coisa-em-si: o que “é por definição” “não é necessariamente pela sua realidade”. Cf. KANT, I., Kritik der Reinen Vernunft, B 622. Só por curiosidade, é de notar que a Escolástica medieval esteve longe de ser monolítica, tanto que, enquanto Anselmo, no seguimento da definição de Boécio, defende o argumento ontológico, ou o acesso do entendimento à realidade, Gaunilo contra-argumenta com a possibilidade dele autorizar a elevação de toda a imaginação à realidade e Tomás de Aquino identifica, em Deus (“acto puro”) essência e existência, sem que todavia possamos definir a sua essência, o que ele é em-si mas, desqualificando o pensamento humano, apenas temos a oportunidade de conhecer o que ele próprio, por analogias, dá a ver de si. É “quase” como a assunção tácita do não-ser de Deus, ou, talvez melhor, da pura intencionalidade de Deus, tendo o mundo e os acontecimentos como seus ob-jectos, cuidando assim da “criação”. A dita prova de Anselmo foi, entretanto, ressuscitada por Descartes, tão atacado, pelo seu dualismo e substancialismo racionalista, por Merleau-Ponty, este mesmo devedor, via Brentano e Husserl, da noção escolástica de intencionalidade, na qual, doravante segundo o Existencialismo, invertendo os valores ontológicos, essência e existência se refundem na existência, no acto mental sensível, na múltipla ecceidade das coisas, que é essencialmente “visão”.

Arte Filosofia Ciência – Digressões (3)



Mas a ciência, enquanto tal, não pode ser criticada do exterior, se a entendermos como obra aberta, pelos seus próprios princípios e métodos, que incluem a consideração ponderada das interpretações especulativas e o uso das mais extravagantes hipóteses, sujeitas ao escrutínio da experiência, apoiada nos recursos técnicos e teóricos disponíveis, ou, no limite, à espera do aperfeiçoamento dialéctico dos meios.
Com certeza – já o dissemos – que não devemos desqualificar por completo a especulação, como o faz o positivismo radical, pois esta pode ser estimulante e levar mesmo a investigação a reorientar-se por vias fecundas até então insuspeitas e à exigência de criar novos métodos e instrumentos de prova. Não existem critérios ‘a priori’ que definam se um problema é científico ou não.[1] Todavia, é a ciência, enquanto processo de racionalização dos problemas da existência humana e das possibilidades da sua solução – sempre imperfeita e insatisfeita consigo mesma –, que tem a última e provisória palavra no âmbito do conhecimento.
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[1] À excepção, talvez, das tautologias e dos seus opostos, os paradoxos, das questões que implicam a sua própria resposta, afirmativa ou negativa. Karl Popper (Cf. Logik der Forschung, 1934) invoca a regra da “falsificabilidade” (a probabilidade prática duma teoria ser desmentida por um facto) contra a clássica “corroboração das hipóteses”. Mas o facto é que nem todos os conhecimentos foram ou podem ser presentemente demonstrados como falsificáveis. Deixarão por isso de serem verosímeis? O “facto” não poderá ser uma “anomalia real”? Para muitas das teorias foi apenas o caso de terem sido corrigidas, aperfeiçoadas, restringidas no seu alcance, como a mecânica de Newton. Além de que nenhuma observação ou experimentação, que nos dão os “factos”, é, ‘a priori’, isenta de erros, de teorias, de limites técnicos. Uma “falsificação” pode estar viciada. Esta regra aplica-se apenas a enunciados que desde logo já se sabe não terem solução teórica, por serem falsos problemas. Por exemplo: “Deus existe ou não?” é um falso problema porque quem o enuncia define à partida Deus como uma entidade que não é passível de observação directa ou material, instrumentalmente controlada. “Deus” só pode ser caracterizado pela sua própria definição, como aliás mostram as supostas “provas da existência de Deus”, desmontadas por Kant com justeza, mas usando doutro critério, lógico, por exemplo, de que a “existência” não é atributo “real” do sujeito dum juízo. Ou seja, não se pode tirar, à maneira escolástica, a existência da essência, o ‘definiens’ (a definição, de que a “existência” faria parte) do ‘definiendum’ (o definido), pois os nossos juízos não se fundam num conhecimento verdadeiro da essência, dado que não temos acesso racional, nem intuitivo, à coisa-em-si: o que “é por definição” “não é necessariamente pela sua realidade”. Cf. KANT, I., Kritik der Reinen Vernunft, B 622. Só por curiosidade, é de notar que a Escolástica medieval esteve longe de ser monolítica, tanto que, enquanto Anselmo, no seguimento da definição de Boécio, defende o argumento ontológico, ou o acesso do entendimento à realidade, Gaunilo contra-argumenta com a possibilidade dele autorizar a elevação de toda a imaginação à realidade e Tomás de Aquino identifica, em Deus (“acto puro”) essência e existência, sem que todavia possamos definir a sua essência, o que ele é em-si mas, desqualificando o pensamento humano, apenas temos a oportunidade de conhecer o que ele próprio, por analogias, dá a ver de si. É “quase” como a assunção tácita do não-ser de Deus, ou, talvez melhor, da pura intencionalidade de Deus, tendo o mundo e os acontecimentos como seus ob-jectos, cuidando assim da “criação”. A dita prova de Anselmo foi, entretanto, ressuscitada por Descartes, tão atacado, pelo seu dualismo e substancialismo racionalista, por Merleau-Ponty, este mesmo devedor, via Brentano e Husserl, da noção escolástica de intencionalidade, na qual, doravante segundo o Existencialismo, invertendo os valores ontológicos, essência e existência se refundem na existência, no acto mental sensível, na múltipla ecceidade das coisas, que é essencialmente “visão”.

Arte Filosofia Ciência – Digressões (3)



Mas a ciência, enquanto tal, não pode ser criticada do exterior, se a entendermos como obra aberta, pelos seus próprios princípios e métodos, que incluem a consideração ponderada das interpretações especulativas e o uso das mais extravagantes hipóteses, sujeitas ao escrutínio da experiência, apoiada nos recursos técnicos e teóricos disponíveis, ou, no limite, à espera do aperfeiçoamento dialéctico dos meios.
Com certeza – já o dissemos – que não devemos desqualificar por completo a especulação, como o faz o positivismo radical, pois esta pode ser estimulante e levar mesmo a investigação a reorientar-se por vias fecundas até então insuspeitas e à exigência de criar novos métodos e instrumentos de prova. Não existem critérios ‘a priori’ que definam se um problema é científico ou não.[1] Todavia, é a ciência, enquanto processo de racionalização dos problemas da existência humana e das possibilidades da sua solução – sempre imperfeita e insatisfeita consigo mesma –, que tem a última e provisória palavra no âmbito do conhecimento.
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[1] À excepção, talvez, das tautologias e dos seus opostos, os paradoxos, das questões que implicam a sua própria resposta, afirmativa ou negativa. Karl Popper (Cf. Logik der Forschung, 1934) invoca a regra da “falsificabilidade” (a probabilidade prática duma teoria ser desmentida por um facto) contra a clássica “corroboração das hipóteses”. Mas o facto é que nem todos os conhecimentos foram ou podem ser presentemente demonstrados como falsificáveis. Deixarão por isso de serem verosímeis? O “facto” não poderá ser uma “anomalia real”? Para muitas das teorias foi apenas o caso de terem sido corrigidas, aperfeiçoadas, restringidas no seu alcance, como a mecânica de Newton. Além de que nenhuma observação ou experimentação, que nos dão os “factos”, é, ‘a priori’, isenta de erros, de teorias, de limites técnicos. Uma “falsificação” pode estar viciada. Esta regra aplica-se apenas a enunciados que desde logo já se sabe não terem solução teórica, por serem falsos problemas. Por exemplo: “Deus existe ou não?” é um falso problema porque quem o enuncia define à partida Deus como uma entidade que não é passível de observação directa ou material, instrumentalmente controlada. “Deus” só pode ser caracterizado pela sua própria definição, como aliás mostram as supostas “provas da existência de Deus”, desmontadas por Kant com justeza, mas usando doutro critério, lógico, por exemplo, de que a “existência” não é atributo “real” do sujeito dum juízo. Ou seja, não se pode tirar, à maneira escolástica, a existência da essência, o ‘definiens’ (a definição, de que a “existência” faria parte) do ‘definiendum’ (o definido), pois os nossos juízos não se fundam num conhecimento verdadeiro da essência, dado que não temos acesso racional, nem intuitivo, à coisa-em-si: o que “é por definição” “não é necessariamente pela sua realidade”. Cf. KANT, I., Kritik der Reinen Vernunft, B 622. Só por curiosidade, é de notar que a Escolástica medieval esteve longe de ser monolítica, tanto que, enquanto Anselmo, no seguimento da definição de Boécio, defende o argumento ontológico, ou o acesso do entendimento à realidade, Gaunilo contra-argumenta com a possibilidade dele autorizar a elevação de toda a imaginação à realidade e Tomás de Aquino identifica, em Deus (“acto puro”) essência e existência, sem que todavia possamos definir a sua essência, o que ele é em-si mas, desqualificando o pensamento humano, apenas temos a oportunidade de conhecer o que ele próprio, por analogias, dá a ver de si. É “quase” como a assunção tácita do não-ser de Deus, ou, talvez melhor, da pura intencionalidade de Deus, tendo o mundo e os acontecimentos como seus ob-jectos, cuidando assim da “criação”. A dita prova de Anselmo foi, entretanto, ressuscitada por Descartes, tão atacado, pelo seu dualismo e substancialismo racionalista, por Merleau-Ponty, este mesmo devedor, via Brentano e Husserl, da noção escolástica de intencionalidade, na qual, doravante segundo o Existencialismo, invertendo os valores ontológicos, essência e existência se refundem na existência, no acto mental sensível, na múltipla ecceidade das coisas, que é essencialmente “visão”.

Conhecimento, Práxis e Liberdade


1.1. Conhecimento e Representação. O conhecimento é uma função da vida psíquica e da actividade social consciente, que se manifesta por fenómenos de carácter representativo e objectivo.
1.2. Representação. Em termos gerais e psicológicos ou subjectivos é a apresentação no “espírito” dos objectos exteriores e mentais. Devemos distinguir entre
a) representação sensível: imagem memorizada de um objecto ou acontecimento, cuja definição e intensidade varia das silhuetas vagas e fugidias à imaginação eidética ou presença nítida e intensa duma figura perceptiva correspondente à recordação do facto (capacidade rara entre os adultos pela sua tendência para o pensamento abstracto), e
b) representação simbólica por substituição do objecto percebido ou real mediante marcas visuais ou sonoras articuladas que o significa. Em termos cognitivos ou objectivos consiste na expressão simbólica duma determinada relação característica entre as propriedades ou factores de um objecto fixado no pensamento, que para tal organiza metodologias (procedimentos gerais de investigação), estruturando-se em conexões lógicas (consistência dedutiva e demonstrativa) e formulações epistemológicas (enunciados objectivos).
1.3. A representação do objecto no sujeito cognitivo não se confunde com o objecto enquanto exterior ao sujeito, mesmo que seja interior a este quando é o caso de ocorrer sob a forma de experiência sentimental, moral ou estética. A representação é uma construção ideal do sujeito realizada segundo as propriedades observadas e relacionadas no objecto do conhecimento por esse mesmo sujeito.
1.4. Logo, o conhecimento não é passivo e directo mas inclui a reflexão sobre as próprias formas de representação.
Há que distinguir no acto do conhecimento: a) o sujeito, com as suas capacidades cognitivas adquiridas na práxis social; b) o objecto exterior ao reflexo consciente, ao pensamento; c) a representação do objecto pelo sujeito, determinada pela práxis social que conduz à produção ideal do conhecimento.
1.5. É a acção ou práxis material e social que leva o sujeito, ou melhor, os sujeitos na sua colaboração social, a distinguir o que é posto por si (a cor que muda com a luz, com a interferência das outras cores, com as paixões emocionais, com as preferências culturais, com a capacidade educada de discriminação e que desaparece com o ocaso; as ilusões visuais decepcionantes relativas ao reconhecimento da imperfeição da percepção do movimento, ao tamanho relativo dos objectos em função da distância e da interferência mútua; o paladar que muda com as flutuações constantes dos humores pessoais, com a mistura de outros condimentos, com o hábito e com a valorização ou rejeição cultural dos sabores e alimentos; as falsas inferências na comparação entre volumes e pesos, entre quantidades e alturas; os equívocos provocados pela centração perceptiva no corpo próprio quando por exemplo nos sentimos recuar quando um objecto paralelo avança ou quando julgamos que as coisas giram à nossa volta; a perplexidade e confusão animista diante da atracção magnética entre dois corpos inanimados, etc., etc.), o que, por seu lado, é posto pelas representações de origem social (a estranheza do dinheiro como realidade ao mesmo tempo física e poder supra sensível, assim como o aparecimento do dinheiro não-físico, carregado duma vitalidade ainda mais invisível e mágica; o conflito entre a razão e a fé, entre as ideias e a acção, entre a teoria e a prática, entre a natureza e a sociedade; a sobrevalorização da fantasia contra o enfrentamento dos factos; a oposição entre os impulsos básicos e as normas sociais, entre os valores e as relações humanas efectivas, entre o ideal e o real) e o que é objectivamente irredutível à ideologia, aos desejos, às mistificações.
Quando é frustrado o nosso poder sobre o real, quando somos levados ao fracasso ou à desilusão, pomos em causa as nossas ideias e práticas, questionamos a racionalidade do real, ou refugiamo-nos num plano mental da pura imaginação do espírito, inversão confortante mas quase sempre incomportável face às relações reais.
1.6. É em suma a acção prática que transforma o nosso conhecimento do mundo, é a práxis (Marx) que substitui o antropocentrismo, o sociocentrismo e o ideologismo pelo polimorfismo (Bachelard), pelo reconhecimento da multiplicidade de formas do real e das possibilidades da sua transfiguração em benefício ou prejuízo do homem.
O conhecimento é, em grande parte, a fixação mental provisória dos esquemas e conteúdos gerais e particulares da acção prática eficaz (Piaget). É o reflexo, altamente complexo, metódico e culturalmente mediado, desta.
1.7. Devemos, pois, entender, que o conhecimento não é um reflexo passivo da realidade. O sujeito para conhecer age sobre o real e o conhecimento é, então, o reflexo simbólico, lógico, epistemológico e prático das acções eficazes do sujeito (colectivo), isto é, que antecipam, reproduzem e criam em função das necessidades consciencializadas e das possibilidades objectivas para as satisfazer.
A prática como unidade da teoria e da acção constitui a realização efectiva do homem, a sua liberdade.

Conhecimento, Práxis e Liberdade


1.1. Conhecimento e Representação. O conhecimento é uma função da vida psíquica e da actividade social consciente, que se manifesta por fenómenos de carácter representativo e objectivo.
1.2. Representação. Em termos gerais e psicológicos ou subjectivos é a apresentação no “espírito” dos objectos exteriores e mentais. Devemos distinguir entre
a) representação sensível: imagem memorizada de um objecto ou acontecimento, cuja definição e intensidade varia das silhuetas vagas e fugidias à imaginação eidética ou presença nítida e intensa duma figura perceptiva correspondente à recordação do facto (capacidade rara entre os adultos pela sua tendência para o pensamento abstracto), e
b) representação simbólica por substituição do objecto percebido ou real mediante marcas visuais ou sonoras articuladas que o significa. Em termos cognitivos ou objectivos consiste na expressão simbólica duma determinada relação característica entre as propriedades ou factores de um objecto fixado no pensamento, que para tal organiza metodologias (procedimentos gerais de investigação), estruturando-se em conexões lógicas (consistência dedutiva e demonstrativa) e formulações epistemológicas (enunciados objectivos).
1.3. A representação do objecto no sujeito cognitivo não se confunde com o objecto enquanto exterior ao sujeito, mesmo que seja interior a este quando é o caso de ocorrer sob a forma de experiência sentimental, moral ou estética. A representação é uma construção ideal do sujeito realizada segundo as propriedades observadas e relacionadas no objecto do conhecimento por esse mesmo sujeito.
1.4. Logo, o conhecimento não é passivo e directo mas inclui a reflexão sobre as próprias formas de representação.
Há que distinguir no acto do conhecimento: a) o sujeito, com as suas capacidades cognitivas adquiridas na práxis social; b) o objecto exterior ao reflexo consciente, ao pensamento; c) a representação do objecto pelo sujeito, determinada pela práxis social que conduz à produção ideal do conhecimento.
1.5. É a acção ou práxis material e social que leva o sujeito, ou melhor, os sujeitos na sua colaboração social, a distinguir o que é posto por si (a cor que muda com a luz, com a interferência das outras cores, com as paixões emocionais, com as preferências culturais, com a capacidade educada de discriminação e que desaparece com o ocaso; as ilusões visuais decepcionantes relativas ao reconhecimento da imperfeição da percepção do movimento, ao tamanho relativo dos objectos em função da distância e da interferência mútua; o paladar que muda com as flutuações constantes dos humores pessoais, com a mistura de outros condimentos, com o hábito e com a valorização ou rejeição cultural dos sabores e alimentos; as falsas inferências na comparação entre volumes e pesos, entre quantidades e alturas; os equívocos provocados pela centração perceptiva no corpo próprio quando por exemplo nos sentimos recuar quando um objecto paralelo avança ou quando julgamos que as coisas giram à nossa volta; a perplexidade e confusão animista diante da atracção magnética entre dois corpos inanimados, etc., etc.), o que, por seu lado, é posto pelas representações de origem social (a estranheza do dinheiro como realidade ao mesmo tempo física e poder supra sensível, assim como o aparecimento do dinheiro não-físico, carregado duma vitalidade ainda mais invisível e mágica; o conflito entre a razão e a fé, entre as ideias e a acção, entre a teoria e a prática, entre a natureza e a sociedade; a sobrevalorização da fantasia contra o enfrentamento dos factos; a oposição entre os impulsos básicos e as normas sociais, entre os valores e as relações humanas efectivas, entre o ideal e o real) e o que é objectivamente irredutível à ideologia, aos desejos, às mistificações.
Quando é frustrado o nosso poder sobre o real, quando somos levados ao fracasso ou à desilusão, pomos em causa as nossas ideias e práticas, questionamos a racionalidade do real, ou refugiamo-nos num plano mental da pura imaginação do espírito, inversão confortante mas quase sempre incomportável face às relações reais.
1.6. É em suma a acção prática que transforma o nosso conhecimento do mundo, é a práxis (Marx) que substitui o antropocentrismo, o sociocentrismo e o ideologismo pelo polimorfismo (Bachelard), pelo reconhecimento da multiplicidade de formas do real e das possibilidades da sua transfiguração em benefício ou prejuízo do homem.
O conhecimento é, em grande parte, a fixação mental provisória dos esquemas e conteúdos gerais e particulares da acção prática eficaz (Piaget). É o reflexo, altamente complexo, metódico e culturalmente mediado, desta.
1.7. Devemos, pois, entender, que o conhecimento não é um reflexo passivo da realidade. O sujeito para conhecer age sobre o real e o conhecimento é, então, o reflexo simbólico, lógico, epistemológico e prático das acções eficazes do sujeito (colectivo), isto é, que antecipam, reproduzem e criam em função das necessidades consciencializadas e das possibilidades objectivas para as satisfazer.
A prática como unidade da teoria e da acção constitui a realização efectiva do homem, a sua liberdade.

Conhecimento, Práxis e Liberdade


1.1. Conhecimento e Representação. O conhecimento é uma função da vida psíquica e da actividade social consciente, que se manifesta por fenómenos de carácter representativo e objectivo.
1.2. Representação. Em termos gerais e psicológicos ou subjectivos é a apresentação no “espírito” dos objectos exteriores e mentais. Devemos distinguir entre
a) representação sensível: imagem memorizada de um objecto ou acontecimento, cuja definição e intensidade varia das silhuetas vagas e fugidias à imaginação eidética ou presença nítida e intensa duma figura perceptiva correspondente à recordação do facto (capacidade rara entre os adultos pela sua tendência para o pensamento abstracto), e
b) representação simbólica por substituição do objecto percebido ou real mediante marcas visuais ou sonoras articuladas que o significa. Em termos cognitivos ou objectivos consiste na expressão simbólica duma determinada relação característica entre as propriedades ou factores de um objecto fixado no pensamento, que para tal organiza metodologias (procedimentos gerais de investigação), estruturando-se em conexões lógicas (consistência dedutiva e demonstrativa) e formulações epistemológicas (enunciados objectivos).
1.3. A representação do objecto no sujeito cognitivo não se confunde com o objecto enquanto exterior ao sujeito, mesmo que seja interior a este quando é o caso de ocorrer sob a forma de experiência sentimental, moral ou estética. A representação é uma construção ideal do sujeito realizada segundo as propriedades observadas e relacionadas no objecto do conhecimento por esse mesmo sujeito.
1.4. Logo, o conhecimento não é passivo e directo mas inclui a reflexão sobre as próprias formas de representação.
Há que distinguir no acto do conhecimento: a) o sujeito, com as suas capacidades cognitivas adquiridas na práxis social; b) o objecto exterior ao reflexo consciente, ao pensamento; c) a representação do objecto pelo sujeito, determinada pela práxis social que conduz à produção ideal do conhecimento.
1.5. É a acção ou práxis material e social que leva o sujeito, ou melhor, os sujeitos na sua colaboração social, a distinguir o que é posto por si (a cor que muda com a luz, com a interferência das outras cores, com as paixões emocionais, com as preferências culturais, com a capacidade educada de discriminação e que desaparece com o ocaso; as ilusões visuais decepcionantes relativas ao reconhecimento da imperfeição da percepção do movimento, ao tamanho relativo dos objectos em função da distância e da interferência mútua; o paladar que muda com as flutuações constantes dos humores pessoais, com a mistura de outros condimentos, com o hábito e com a valorização ou rejeição cultural dos sabores e alimentos; as falsas inferências na comparação entre volumes e pesos, entre quantidades e alturas; os equívocos provocados pela centração perceptiva no corpo próprio quando por exemplo nos sentimos recuar quando um objecto paralelo avança ou quando julgamos que as coisas giram à nossa volta; a perplexidade e confusão animista diante da atracção magnética entre dois corpos inanimados, etc., etc.), o que, por seu lado, é posto pelas representações de origem social (a estranheza do dinheiro como realidade ao mesmo tempo física e poder supra sensível, assim como o aparecimento do dinheiro não-físico, carregado duma vitalidade ainda mais invisível e mágica; o conflito entre a razão e a fé, entre as ideias e a acção, entre a teoria e a prática, entre a natureza e a sociedade; a sobrevalorização da fantasia contra o enfrentamento dos factos; a oposição entre os impulsos básicos e as normas sociais, entre os valores e as relações humanas efectivas, entre o ideal e o real) e o que é objectivamente irredutível à ideologia, aos desejos, às mistificações.
Quando é frustrado o nosso poder sobre o real, quando somos levados ao fracasso ou à desilusão, pomos em causa as nossas ideias e práticas, questionamos a racionalidade do real, ou refugiamo-nos num plano mental da pura imaginação do espírito, inversão confortante mas quase sempre incomportável face às relações reais.
1.6. É em suma a acção prática que transforma o nosso conhecimento do mundo, é a práxis (Marx) que substitui o antropocentrismo, o sociocentrismo e o ideologismo pelo polimorfismo (Bachelard), pelo reconhecimento da multiplicidade de formas do real e das possibilidades da sua transfiguração em benefício ou prejuízo do homem.
O conhecimento é, em grande parte, a fixação mental provisória dos esquemas e conteúdos gerais e particulares da acção prática eficaz (Piaget). É o reflexo, altamente complexo, metódico e culturalmente mediado, desta.
1.7. Devemos, pois, entender, que o conhecimento não é um reflexo passivo da realidade. O sujeito para conhecer age sobre o real e o conhecimento é, então, o reflexo simbólico, lógico, epistemológico e prático das acções eficazes do sujeito (colectivo), isto é, que antecipam, reproduzem e criam em função das necessidades consciencializadas e das possibilidades objectivas para as satisfazer.
A prática como unidade da teoria e da acção constitui a realização efectiva do homem, a sua liberdade.

Marxismo – A Aporia do Objectivo Comunista

Ao desenvolvimento social dos indivíduos corresponde a representação do “homem como ser universal”, como ser idêntico na sua essência a todos os seres da mesma espécie e livre de realizar em si os atributos doravante comuns, universais no duplo sentido da identidade dos atributos nos indivíduos e dos indivíduos nos atributos e da superação da singularidade sensível no pensar contido, ou melhor, gerado, nas relações do homem com o homem. Foi até aqui, ou quase, que Feuerbach chegou e parou, ao supor que estas universalidades intersubjectivas constituíam a essência originária do homem, enquanto Marx descobriu que elas são, não a essência, mas o resultado do desenvolvimento concreto da sociedade. Será apenas na subversão desta que se conseguirá solucionar o problema da dignidade, ou seja, da alienação. Nada de surpreendente há, assim, na postura indignada de Marx a respeito da insistência de muitos na escapatória metafísica face ao incontornável esmagamento do indivíduo pela lógica objectiva que o atormenta:
«Não nos vamos, naturalmente, dar ao trabalho de esclarecer os nossos sábios filósofos sobre o facto de que a “libertação” do “Homem” não avançou um único passo por terem resolvido a filosofia, a teologia, a substância e todo o lixo na “Consciência de si”, por terem libertado o “Homem” do domínio destas frases sob as quais ele nunca foi escravo; de que não é possível uma libertação real a não ser no mundo real e com meios reais [...] A “libertação” é um acto histórico, não um acto de pensamento, e é efectuada por relações históricas, pelo [nív]el da indústria, do com[ércio], da [agri]cultura, do inter[câmbio]…»
E, se a libertação é um acto histórico, se começa pela abolição das classes sociais, como estas resultam do nível de desenvolvimento das forças produtivas, de modo algum são as ilusões ideológicas, metafísicas, religiosas, que se encontram na base da alienação, do desapossamento social do homem da humanidade objectivada por ele próprio, ainda que representem as formas mentais dessa mesma alienação e criem nele um falso sentido da vida, suporte ético-cognitivo do anti-humanismo prático. Então o que se precisa não é por certo retornar a um imaginário “estado de natureza”, no qual o “bom selvagem” comia, com fome, por magia, “com paixão” mas sem o reconhecimento da humanidade em cada homem, a carne naturalmente humana deste. O que, na verdade, há a fazer é desenvolver a indústria e, com ela, libertar o indivíduo da pressão das necessidades materiais, que são certamente também resultado da pressão duma economia que o submete e, ao mesmo tempo, do desejo de ter para si mesmo – enquanto homem idêntico, humano, quando nem todos podem ter – os produtos e os poderes em que as aptidões humanas se vão realizando. Nos Princípios Básicos do Comunismo (1847) Engels mostra como a simples vontade nada consegue sem o poder, sem a mudança material das condições de existência. A “vontade de poder” resulta da necessidade natural-cultural que o impulsiona e lhe imprime a sua marca:
«Enquanto não puder ser produzido tanto que seja não só suficiente para todos, mas que também fique um excedente de produtos para aumento do capital social e para a formação de mais forças produtivas, terá sempre de haver uma classe dominante, dispondo das forças produtivas da sociedade, e uma classe pobre e oprimida.»
O motor da oposição entre os homens não tem nada a ver com um egoísmo inato, pré-social, que mandaria à fava, ou apaziguaria em rituais e crenças, a má consciência de terem traído a sua própria essência genérica. Foi – e deixemos de lado um aprofundamento analítico que não compete a este ensaio – a divisão do trabalho, a instalação e permanência em terras agrícolas ou de caça, as funções defensivas e ofensivas, o crescimento da população e a conquista de espaço vital, o organizar-se em estruturas sociais hierarquizadas (famílias e tribos) como modo de racionalização dos meios e de identificação afectiva intragrupal, numa estratégia/condição de subsistência, de domínio do solo, riqueza originária, gerando as primeiras formas de aglutinação ideológica; foi, pois, tudo isto que começou a fazer emergir a repartição/apropriação desigual – em função das capacidades e do acaso –, na medida em que conduziu à criação de excedente, acompanhada pela reformulação de valores e poderes (quem tem o poder exerce-o como expressão natural da sua existência, da sua identidade e diferença, fonte social/natural do egoísmo, que para ele não é egoísmo mas “direito” natural ao seu ser). Pela acumulação e o correlativo progresso das aptidões, a sociedade acaba por se elevar ao plano da sobre-vida, de vários modos de expressão, de poder e de liberdade, apenas acessíveis a alguns, em última instância por causa do fraco nível dos meios produtivos. A desigualdade entre os homens e os correlativos instrumentos de repressão e condicionamento da liberdade são explicados por Marx de acordo com a sua génese natural/social, “materialista”:
«Com a divisão do trabalho, na qual estão dadas todas estas contradições, e a qual por sua vez assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em famílias individuais e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada também a repartição, e precisamente a repartição desigual, tanto quantitativa como qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e portanto a propriedade, a qual tem já o seu embrião, a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são os escravos do homem. A escravatura latente na família, se bem que ainda muito rudimentar, é a primeira propriedade, que de resto já aqui corresponde perfeitamente à definição dos modernos economistas, segundo a qual ela é o dispor de força de trabalho [Arbeitskraft] alheia.»
Enquanto a criação da riqueza de uns continuasse a implicar a apropriação do trabalho específico dos outros, manter-se-ia a inevitabilidade da exploração, socialmente organizada e desigualmente repartida, do homem pelo homem.
Mas nenhum homem é autênticamente livre junto daqueles que não o são. É por isso que para Marx a liberdade só existiria na meta que visa a praxis comunista, naquela “idade de ouro” sem memória do medo de não se usufruir dos bens (utilitários, formativos, intelectuais, artísticos e serviços) socialmente produzidos, e da própria Natureza, na era da abundância sem limites e na qual a cobiça egoísta apenas poderia ser a manifestação duma patologia mental. Quando o homem conseguisse socializar politicamente os meios produtivos, em razão da irracionalidade concorrencial bloqueante do progresso, qualitativo e quantitativo, daqueles, tudo ficaria ao dispor de todos, a sua apropriação privada nada mais seria que uma lembrança dos livros de História.
Porém, a própria História tratou de fazer fracassar o sonho comunista. O século XX assistiu à derrocada estrondosa dum projecto por razões ainda não satisfatoriamente conhecidas. Mais do que isso: o sonho de liberdade concreta mas condicionada por valores tradicionais, pela ignorância cultural, pelo ressentimento e pelas dificuldades criadas pelos inimigos internos e externos (conduzindo à especificidade do socialismo em cada país), catapultou os sonhadores para a construção de alguns dos mais notórios regimes de incompetência económica e de terror político (muitas vezes necessário mas também exagerado) do último século, embora longe do pavor das guerras, perseguições, encarceramentos e assassínios provocados pelos regimes capitalistas. Certos governos socialistas chegaram mesmo, a pretexto da luta heróica pela igualdade, a reintroduzir uma nova espécie de escravatura, sob a forma eufémica dos “campos de trabalho” e do célebre Gulag, para delinquentes, sabotadores da propriedade social, adversários políticos activos e vítimas de  paranóia e de vingança.
O marxismo provou, na prática, a importância do desenvolvimento dos meios de produção nas relações sociais, assim como da política, que por sua vez nelas interfere em função das necessidades e interesses associados àqueles desenvolvimentos técnicos e relações produtivas.
São, por isso e além disso, as condições sócio-económicas que condicionam o uso político dos ideais. O belo ideal comunista, na situação histórica em que foi tentado pôr de pé, provou-se negando-se em algumas experiências mal sucedidas para renascer no futuro com mais potencial de transformação.
Há, e ainda bem, os que insistem em realizá-lo no futuro. Mesmo reconhecendo os hediondos crimes do passado perpetrados pelos seus camaradas - muitas vezes por força das circunstâncias provocadas pelos seus inimigos e, na maioria dos casos, feitos contra estes -, os comunistas não devem ainda ignorar a enorme dificuldade que haverá em satisfazer a dignidade dos milhares de milhões de indivíduos pela apropriação igualitária dos bens do engenho humano, daquilo que é o produto do seu trabalho geral, condição sine qua non do comunismo.
Contudo, o grande obstáculo ao futuro está no presente: é de tal maneira complexa a rede de interesses diversos e contraditórios, a necessidade de assegurar o porvir competindo, estimulando a criatividade tecnológica, gerando novos postos de trabalho e eliminando antigos, expandindo o comércio, fazendo crescer a massa monetária, acumulando capital, especulando com ele, deslocando-o internacionalmente ao sabor dos movimentos dos mercados de trabalho e bolsistas, etc.; toda esta azáfama servindo, por um mecanismo objectivo de reprodução e reinvestimento do capital, as necessidades humanas que ela própria criou e de que se alimenta – eis, aparentemente imparável, um movimento em espiral, um círculo vicioso no qual o homem é ao mesmo tempo agente e instrumento.
E este homem, explorado pela transmutação das suas próprias necessidades, realiza-se também no jogo, ou aspira a usufruir, de acordo com as condições objectivas, dos valores de consumo e pelos quais ele se consome, valores do desejo, do trabalho, da carreira, da família, socialmente condicionados, e duma política que, face a forças cada vez mais autónomas, se circunscreve a horizontes pragmáticos. Submetendo-se obrigatoriamente às regras, dentro de certos parâmetros, o indivíduo médio vê no cumprimento delas uma paradoxal invenção de si mesmo que o aliena do próprio sentido, socialmente condicionado, da sua vida: pouco parece poder fazer perante um Leviathan económico cuja lógica desconhece, e ao qual tem de sacrificar os desejos mais íntimos, aqueles que fariam da existência, não um devir feito à força de dever mas algo que valeria a pena viver.
Marx e Engels num dos parágrafos de A Ideologia Alemã, denunciaram a estreiteza da existência individual na sociedade burguesa, condição, segundo eles desta mesma sociedade:

«enquanto [...] a actividade não é dividida voluntariamente, mas sim naturalmente, a própria acção do homem se torna para este um poder alheio e oposto que o subjuga, em vez de ser ele a dominá-la. É assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um círculo de actividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador ou pastor ou crítico crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência – ao passo que na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de actividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.»
Mas será possível que alguma vez, dada a elevação progressiva dos níveis de qualificação requeridos para as mais prestigiadas actividades profissionais, e até para muitas das outras, assim como a necessidade de descanso e de lazer, os homens possam, consigam ou até desejem fazer engenharia de manhã, sexo ao almoço, medicina de tarde, literatura de noite e ginástica de madrugada?
A constatação feita e a interrogação posta por Henri Lefebvre em 1962 parecem manter toda a sua actualidade, a desilusão do presente e a abertura ao futuro: «A aspiração à vida nova não teria sido uma formulação vaga e prematura da reivindicação total? Sem dúvida. A reivindicação total poderá conduzir à criação duma vida nova? Aqui está o problema.»
E é indubitável um problema que se liga ao facto de que superar teoricamente a filosofia especulativa e impotente nascida deste mundo não é superar materialmente o mundo que também fez nascer a nova, e só aparentemente moribunda, filosofia da vida efectiva.
O materialismo histórico e dialéctico não pressupõe a necessidade do socialismo e do comunismo. A suprema ironia da obra de Marx está no facto de, ao mesmo tempo que acaba logicamente com a metafísica e com a nostalgia idealista duma teleologia do sentido humano, fornecer os argumentos teóricos do seu fracasso prático e, mediante essa autocrítica, da possibilidade do seu futuro.
As questões de Henri Lefebvre parecem, pois, patéticas. E, contudo…
Os relógios inventados pelo homem marcam a hora, e as possibilidades humanas estão ao alcance da sua realização.

Marxismo – A Aporia do Objectivo Comunista

Ao desenvolvimento social dos indivíduos corresponde a representação do “homem como ser universal”, como ser idêntico na sua essência a todos os seres da mesma espécie e livre de realizar em si os atributos doravante comuns, universais no duplo sentido da identidade dos atributos nos indivíduos e dos indivíduos nos atributos e da superação da singularidade sensível no pensar contido, ou melhor, gerado, nas relações do homem com o homem. Foi até aqui, ou quase, que Feuerbach chegou e parou, ao supor que estas universalidades intersubjectivas constituíam a essência originária do homem, enquanto Marx descobriu que elas são, não a essência, mas o resultado do desenvolvimento concreto da sociedade. Será apenas na subversão desta que se conseguirá solucionar o problema da dignidade, ou seja, da alienação. Nada de surpreendente há, assim, na postura indignada de Marx a respeito da insistência de muitos na escapatória metafísica face ao incontornável esmagamento do indivíduo pela lógica objectiva que o atormenta:
«Não nos vamos, naturalmente, dar ao trabalho de esclarecer os nossos sábios filósofos sobre o facto de que a “libertação” do “Homem” não avançou um único passo por terem resolvido a filosofia, a teologia, a substância e todo o lixo na “Consciência de si”, por terem libertado o “Homem” do domínio destas frases sob as quais ele nunca foi escravo; de que não é possível uma libertação real a não ser no mundo real e com meios reais [...] A “libertação” é um acto histórico, não um acto de pensamento, e é efectuada por relações históricas, pelo [nív]el da indústria, do com[ércio], da [agri]cultura, do inter[câmbio]…»
E, se a libertação é um acto histórico, se começa pela abolição das classes sociais, como estas resultam do nível de desenvolvimento das forças produtivas, de modo algum são as ilusões ideológicas, metafísicas, religiosas, que se encontram na base da alienação, do desapossamento social do homem da humanidade objectivada por ele próprio, ainda que representem as formas mentais dessa mesma alienação e criem nele um falso sentido da vida, suporte ético-cognitivo do anti-humanismo prático. Então o que se precisa não é por certo retornar a um imaginário “estado de natureza”, no qual o “bom selvagem” comia, com fome, por magia, “com paixão” mas sem o reconhecimento da humanidade em cada homem, a carne naturalmente humana deste. O que, na verdade, há a fazer é desenvolver a indústria e, com ela, libertar o indivíduo da pressão das necessidades materiais, que são certamente também resultado da pressão duma economia que o submete e, ao mesmo tempo, do desejo de ter para si mesmo – enquanto homem idêntico, humano, quando nem todos podem ter – os produtos e os poderes em que as aptidões humanas se vão realizando. Nos Princípios Básicos do Comunismo (1847) Engels mostra como a simples vontade nada consegue sem o poder, sem a mudança material das condições de existência. A “vontade de poder” resulta da necessidade natural-cultural que o impulsiona e lhe imprime a sua marca:
«Enquanto não puder ser produzido tanto que seja não só suficiente para todos, mas que também fique um excedente de produtos para aumento do capital social e para a formação de mais forças produtivas, terá sempre de haver uma classe dominante, dispondo das forças produtivas da sociedade, e uma classe pobre e oprimida.»
O motor da oposição entre os homens não tem nada a ver com um egoísmo inato, pré-social, que mandaria à fava, ou apaziguaria em rituais e crenças, a má consciência de terem traído a sua própria essência genérica. Foi – e deixemos de lado um aprofundamento analítico que não compete a este ensaio – a divisão do trabalho, a instalação e permanência em terras agrícolas ou de caça, as funções defensivas e ofensivas, o crescimento da população e a conquista de espaço vital, o organizar-se em estruturas sociais hierarquizadas (famílias e tribos) como modo de racionalização dos meios e de identificação afectiva intragrupal, numa estratégia/condição de subsistência, de domínio do solo, riqueza originária, gerando as primeiras formas de aglutinação ideológica; foi, pois, tudo isto que começou a fazer emergir a repartição/apropriação desigual – em função das capacidades e do acaso –, na medida em que conduziu à criação de excedente, acompanhada pela reformulação de valores e poderes (quem tem o poder exerce-o como expressão natural da sua existência, da sua identidade e diferença, fonte social/natural do egoísmo, que para ele não é egoísmo mas “direito” natural ao seu ser). Pela acumulação e o correlativo progresso das aptidões, a sociedade acaba por se elevar ao plano da sobre-vida, de vários modos de expressão, de poder e de liberdade, apenas acessíveis a alguns, em última instância por causa do fraco nível dos meios produtivos. A desigualdade entre os homens e os correlativos instrumentos de repressão e condicionamento da liberdade são explicados por Marx de acordo com a sua génese natural/social, “materialista”:
«Com a divisão do trabalho, na qual estão dadas todas estas contradições, e a qual por sua vez assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em famílias individuais e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada também a repartição, e precisamente a repartição desigual, tanto quantitativa como qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e portanto a propriedade, a qual tem já o seu embrião, a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são os escravos do homem. A escravatura latente na família, se bem que ainda muito rudimentar, é a primeira propriedade, que de resto já aqui corresponde perfeitamente à definição dos modernos economistas, segundo a qual ela é o dispor de força de trabalho [Arbeitskraft] alheia.»
Enquanto a criação da riqueza de uns continuasse a implicar a apropriação do trabalho específico dos outros, manter-se-ia a inevitabilidade da exploração, socialmente organizada e desigualmente repartida, do homem pelo homem.
Mas nenhum homem é autênticamente livre junto daqueles que não o são. É por isso que para Marx a liberdade só existiria na meta que visa a praxis comunista, naquela “idade de ouro” sem memória do medo de não se usufruir dos bens (utilitários, formativos, intelectuais, artísticos e serviços) socialmente produzidos, e da própria Natureza, na era da abundância sem limites e na qual a cobiça egoísta apenas poderia ser a manifestação duma patologia mental. Quando o homem conseguisse socializar politicamente os meios produtivos, em razão da irracionalidade concorrencial bloqueante do progresso, qualitativo e quantitativo, daqueles, tudo ficaria ao dispor de todos, a sua apropriação privada nada mais seria que uma lembrança dos livros de História.
Porém, a própria História tratou de fazer fracassar o sonho comunista. O século XX assistiu à derrocada estrondosa dum projecto por razões ainda não satisfatoriamente conhecidas. Mais do que isso: o sonho de liberdade concreta mas condicionada por valores tradicionais, pela ignorância cultural, pelo ressentimento e pelas dificuldades criadas pelos inimigos internos e externos (conduzindo à especificidade do socialismo em cada país), catapultou os sonhadores para a construção de alguns dos mais notórios regimes de incompetência económica e de terror político (muitas vezes necessário mas também exagerado) do último século, embora longe do pavor das guerras, perseguições, encarceramentos e assassínios provocados pelos regimes capitalistas. Certos governos socialistas chegaram mesmo, a pretexto da luta heróica pela igualdade, a reintroduzir uma nova espécie de escravatura, sob a forma eufémica dos “campos de trabalho” e do célebre Gulag, para delinquentes, sabotadores da propriedade social, adversários políticos activos e vítimas de  paranóia e de vingança.
O marxismo provou, na prática, a importância do desenvolvimento dos meios de produção nas relações sociais, assim como da política, que por sua vez nelas interfere em função das necessidades e interesses associados àqueles desenvolvimentos técnicos e relações produtivas.
São, por isso e além disso, as condições sócio-económicas que condicionam o uso político dos ideais. O belo ideal comunista, na situação histórica em que foi tentado pôr de pé, provou-se negando-se em algumas experiências mal sucedidas para renascer no futuro com mais potencial de transformação.
Há, e ainda bem, os que insistem em realizá-lo no futuro. Mesmo reconhecendo os hediondos crimes do passado perpetrados pelos seus camaradas - muitas vezes por força das circunstâncias provocadas pelos seus inimigos e, na maioria dos casos, feitos contra estes -, os comunistas não devem ainda ignorar a enorme dificuldade que haverá em satisfazer a dignidade dos milhares de milhões de indivíduos pela apropriação igualitária dos bens do engenho humano, daquilo que é o produto do seu trabalho geral, condição sine qua non do comunismo.
Contudo, o grande obstáculo ao futuro está no presente: é de tal maneira complexa a rede de interesses diversos e contraditórios, a necessidade de assegurar o porvir competindo, estimulando a criatividade tecnológica, gerando novos postos de trabalho e eliminando antigos, expandindo o comércio, fazendo crescer a massa monetária, acumulando capital, especulando com ele, deslocando-o internacionalmente ao sabor dos movimentos dos mercados de trabalho e bolsistas, etc.; toda esta azáfama servindo, por um mecanismo objectivo de reprodução e reinvestimento do capital, as necessidades humanas que ela própria criou e de que se alimenta – eis, aparentemente imparável, um movimento em espiral, um círculo vicioso no qual o homem é ao mesmo tempo agente e instrumento.
E este homem, explorado pela transmutação das suas próprias necessidades, realiza-se também no jogo, ou aspira a usufruir, de acordo com as condições objectivas, dos valores de consumo e pelos quais ele se consome, valores do desejo, do trabalho, da carreira, da família, socialmente condicionados, e duma política que, face a forças cada vez mais autónomas, se circunscreve a horizontes pragmáticos. Submetendo-se obrigatoriamente às regras, dentro de certos parâmetros, o indivíduo médio vê no cumprimento delas uma paradoxal invenção de si mesmo que o aliena do próprio sentido, socialmente condicionado, da sua vida: pouco parece poder fazer perante um Leviathan económico cuja lógica desconhece, e ao qual tem de sacrificar os desejos mais íntimos, aqueles que fariam da existência, não um devir feito à força de dever mas algo que valeria a pena viver.
Marx e Engels num dos parágrafos de A Ideologia Alemã, denunciaram a estreiteza da existência individual na sociedade burguesa, condição, segundo eles desta mesma sociedade:

«enquanto [...] a actividade não é dividida voluntariamente, mas sim naturalmente, a própria acção do homem se torna para este um poder alheio e oposto que o subjuga, em vez de ser ele a dominá-la. É assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um círculo de actividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador ou pastor ou crítico crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência – ao passo que na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de actividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.»
Mas será possível que alguma vez, dada a elevação progressiva dos níveis de qualificação requeridos para as mais prestigiadas actividades profissionais, e até para muitas das outras, assim como a necessidade de descanso e de lazer, os homens possam, consigam ou até desejem fazer engenharia de manhã, sexo ao almoço, medicina de tarde, literatura de noite e ginástica de madrugada?
A constatação feita e a interrogação posta por Henri Lefebvre em 1962 parecem manter toda a sua actualidade, a desilusão do presente e a abertura ao futuro: «A aspiração à vida nova não teria sido uma formulação vaga e prematura da reivindicação total? Sem dúvida. A reivindicação total poderá conduzir à criação duma vida nova? Aqui está o problema.»
E é indubitável um problema que se liga ao facto de que superar teoricamente a filosofia especulativa e impotente nascida deste mundo não é superar materialmente o mundo que também fez nascer a nova, e só aparentemente moribunda, filosofia da vida efectiva.
O materialismo histórico e dialéctico não pressupõe a necessidade do socialismo e do comunismo. A suprema ironia da obra de Marx está no facto de, ao mesmo tempo que acaba logicamente com a metafísica e com a nostalgia idealista duma teleologia do sentido humano, fornecer os argumentos teóricos do seu fracasso prático e, mediante essa autocrítica, da possibilidade do seu futuro.
As questões de Henri Lefebvre parecem, pois, patéticas. E, contudo…
Os relógios inventados pelo homem marcam a hora, e as possibilidades humanas estão ao alcance da sua realização.

Marxismo – A Aporia do Objectivo Comunista

Ao desenvolvimento social dos indivíduos corresponde a representação do “homem como ser universal”, como ser idêntico na sua essência a todos os seres da mesma espécie e livre de realizar em si os atributos doravante comuns, universais no duplo sentido da identidade dos atributos nos indivíduos e dos indivíduos nos atributos e da superação da singularidade sensível no pensar contido, ou melhor, gerado, nas relações do homem com o homem. Foi até aqui, ou quase, que Feuerbach chegou e parou, ao supor que estas universalidades intersubjectivas constituíam a essência originária do homem, enquanto Marx descobriu que elas são, não a essência, mas o resultado do desenvolvimento concreto da sociedade. Será apenas na subversão desta que se conseguirá solucionar o problema da dignidade, ou seja, da alienação. Nada de surpreendente há, assim, na postura indignada de Marx a respeito da insistência de muitos na escapatória metafísica face ao incontornável esmagamento do indivíduo pela lógica objectiva que o atormenta:
«Não nos vamos, naturalmente, dar ao trabalho de esclarecer os nossos sábios filósofos sobre o facto de que a “libertação” do “Homem” não avançou um único passo por terem resolvido a filosofia, a teologia, a substância e todo o lixo na “Consciência de si”, por terem libertado o “Homem” do domínio destas frases sob as quais ele nunca foi escravo; de que não é possível uma libertação real a não ser no mundo real e com meios reais [...] A “libertação” é um acto histórico, não um acto de pensamento, e é efectuada por relações históricas, pelo [nív]el da indústria, do com[ércio], da [agri]cultura, do inter[câmbio]…»
E, se a libertação é um acto histórico, se começa pela abolição das classes sociais, como estas resultam do nível de desenvolvimento das forças produtivas, de modo algum são as ilusões ideológicas, metafísicas, religiosas, que se encontram na base da alienação, do desapossamento social do homem da humanidade objectivada por ele próprio, ainda que representem as formas mentais dessa mesma alienação e criem nele um falso sentido da vida, suporte ético-cognitivo do anti-humanismo prático. Então o que se precisa não é por certo retornar a um imaginário “estado de natureza”, no qual o “bom selvagem” comia, com fome, por magia, “com paixão” mas sem o reconhecimento da humanidade em cada homem, a carne naturalmente humana deste. O que, na verdade, há a fazer é desenvolver a indústria e, com ela, libertar o indivíduo da pressão das necessidades materiais, que são certamente também resultado da pressão duma economia que o submete e, ao mesmo tempo, do desejo de ter para si mesmo – enquanto homem idêntico, humano, quando nem todos podem ter – os produtos e os poderes em que as aptidões humanas se vão realizando. Nos Princípios Básicos do Comunismo (1847) Engels mostra como a simples vontade nada consegue sem o poder, sem a mudança material das condições de existência. A “vontade de poder” resulta da necessidade natural-cultural que o impulsiona e lhe imprime a sua marca:
«Enquanto não puder ser produzido tanto que seja não só suficiente para todos, mas que também fique um excedente de produtos para aumento do capital social e para a formação de mais forças produtivas, terá sempre de haver uma classe dominante, dispondo das forças produtivas da sociedade, e uma classe pobre e oprimida.»
O motor da oposição entre os homens não tem nada a ver com um egoísmo inato, pré-social, que mandaria à fava, ou apaziguaria em rituais e crenças, a má consciência de terem traído a sua própria essência genérica. Foi – e deixemos de lado um aprofundamento analítico que não compete a este ensaio – a divisão do trabalho, a instalação e permanência em terras agrícolas ou de caça, as funções defensivas e ofensivas, o crescimento da população e a conquista de espaço vital, o organizar-se em estruturas sociais hierarquizadas (famílias e tribos) como modo de racionalização dos meios e de identificação afectiva intragrupal, numa estratégia/condição de subsistência, de domínio do solo, riqueza originária, gerando as primeiras formas de aglutinação ideológica; foi, pois, tudo isto que começou a fazer emergir a repartição/apropriação desigual – em função das capacidades e do acaso –, na medida em que conduziu à criação de excedente, acompanhada pela reformulação de valores e poderes (quem tem o poder exerce-o como expressão natural da sua existência, da sua identidade e diferença, fonte social/natural do egoísmo, que para ele não é egoísmo mas “direito” natural ao seu ser). Pela acumulação e o correlativo progresso das aptidões, a sociedade acaba por se elevar ao plano da sobre-vida, de vários modos de expressão, de poder e de liberdade, apenas acessíveis a alguns, em última instância por causa do fraco nível dos meios produtivos. A desigualdade entre os homens e os correlativos instrumentos de repressão e condicionamento da liberdade são explicados por Marx de acordo com a sua génese natural/social, “materialista”:
«Com a divisão do trabalho, na qual estão dadas todas estas contradições, e a qual por sua vez assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em famílias individuais e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada também a repartição, e precisamente a repartição desigual, tanto quantitativa como qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e portanto a propriedade, a qual tem já o seu embrião, a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são os escravos do homem. A escravatura latente na família, se bem que ainda muito rudimentar, é a primeira propriedade, que de resto já aqui corresponde perfeitamente à definição dos modernos economistas, segundo a qual ela é o dispor de força de trabalho [Arbeitskraft] alheia.»
Enquanto a criação da riqueza de uns continuasse a implicar a apropriação do trabalho específico dos outros, manter-se-ia a inevitabilidade da exploração, socialmente organizada e desigualmente repartida, do homem pelo homem.
Mas nenhum homem é autênticamente livre junto daqueles que não o são. É por isso que para Marx a liberdade só existiria na meta que visa a praxis comunista, naquela “idade de ouro” sem memória do medo de não se usufruir dos bens (utilitários, formativos, intelectuais, artísticos e serviços) socialmente produzidos, e da própria Natureza, na era da abundância sem limites e na qual a cobiça egoísta apenas poderia ser a manifestação duma patologia mental. Quando o homem conseguisse socializar politicamente os meios produtivos, em razão da irracionalidade concorrencial bloqueante do progresso, qualitativo e quantitativo, daqueles, tudo ficaria ao dispor de todos, a sua apropriação privada nada mais seria que uma lembrança dos livros de História.
Porém, a própria História tratou de fazer fracassar o sonho comunista. O século XX assistiu à derrocada estrondosa dum projecto por razões ainda não satisfatoriamente conhecidas. Mais do que isso: o sonho de liberdade concreta mas condicionada por valores tradicionais, pela ignorância cultural, pelo ressentimento e pelas dificuldades criadas pelos inimigos internos e externos (conduzindo à especificidade do socialismo em cada país), catapultou os sonhadores para a construção de alguns dos mais notórios regimes de incompetência económica e de terror político (muitas vezes necessário mas também exagerado) do último século, embora longe do pavor das guerras, perseguições, encarceramentos e assassínios provocados pelos regimes capitalistas. Certos governos socialistas chegaram mesmo, a pretexto da luta heróica pela igualdade, a reintroduzir uma nova espécie de escravatura, sob a forma eufémica dos “campos de trabalho” e do célebre Gulag, para delinquentes, sabotadores da propriedade social, adversários políticos activos e vítimas de  paranóia e de vingança.
O marxismo provou, na prática, a importância do desenvolvimento dos meios de produção nas relações sociais, assim como da política, que por sua vez nelas interfere em função das necessidades e interesses associados àqueles desenvolvimentos técnicos e relações produtivas.
São, por isso e além disso, as condições sócio-económicas que condicionam o uso político dos ideais. O belo ideal comunista, na situação histórica em que foi tentado pôr de pé, provou-se negando-se em algumas experiências mal sucedidas para renascer no futuro com mais potencial de transformação.
Há, e ainda bem, os que insistem em realizá-lo no futuro. Mesmo reconhecendo os hediondos crimes do passado perpetrados pelos seus camaradas - muitas vezes por força das circunstâncias provocadas pelos seus inimigos e, na maioria dos casos, feitos contra estes -, os comunistas não devem ainda ignorar a enorme dificuldade que haverá em satisfazer a dignidade dos milhares de milhões de indivíduos pela apropriação igualitária dos bens do engenho humano, daquilo que é o produto do seu trabalho geral, condição sine qua non do comunismo.
Contudo, o grande obstáculo ao futuro está no presente: é de tal maneira complexa a rede de interesses diversos e contraditórios, a necessidade de assegurar o porvir competindo, estimulando a criatividade tecnológica, gerando novos postos de trabalho e eliminando antigos, expandindo o comércio, fazendo crescer a massa monetária, acumulando capital, especulando com ele, deslocando-o internacionalmente ao sabor dos movimentos dos mercados de trabalho e bolsistas, etc.; toda esta azáfama servindo, por um mecanismo objectivo de reprodução e reinvestimento do capital, as necessidades humanas que ela própria criou e de que se alimenta – eis, aparentemente imparável, um movimento em espiral, um círculo vicioso no qual o homem é ao mesmo tempo agente e instrumento.
E este homem, explorado pela transmutação das suas próprias necessidades, realiza-se também no jogo, ou aspira a usufruir, de acordo com as condições objectivas, dos valores de consumo e pelos quais ele se consome, valores do desejo, do trabalho, da carreira, da família, socialmente condicionados, e duma política que, face a forças cada vez mais autónomas, se circunscreve a horizontes pragmáticos. Submetendo-se obrigatoriamente às regras, dentro de certos parâmetros, o indivíduo médio vê no cumprimento delas uma paradoxal invenção de si mesmo que o aliena do próprio sentido, socialmente condicionado, da sua vida: pouco parece poder fazer perante um Leviathan económico cuja lógica desconhece, e ao qual tem de sacrificar os desejos mais íntimos, aqueles que fariam da existência, não um devir feito à força de dever mas algo que valeria a pena viver.
Marx e Engels num dos parágrafos de A Ideologia Alemã, denunciaram a estreiteza da existência individual na sociedade burguesa, condição, segundo eles desta mesma sociedade:

«enquanto [...] a actividade não é dividida voluntariamente, mas sim naturalmente, a própria acção do homem se torna para este um poder alheio e oposto que o subjuga, em vez de ser ele a dominá-la. É assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um círculo de actividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador ou pastor ou crítico crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência – ao passo que na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de actividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.»
Mas será possível que alguma vez, dada a elevação progressiva dos níveis de qualificação requeridos para as mais prestigiadas actividades profissionais, e até para muitas das outras, assim como a necessidade de descanso e de lazer, os homens possam, consigam ou até desejem fazer engenharia de manhã, sexo ao almoço, medicina de tarde, literatura de noite e ginástica de madrugada?
A constatação feita e a interrogação posta por Henri Lefebvre em 1962 parecem manter toda a sua actualidade, a desilusão do presente e a abertura ao futuro: «A aspiração à vida nova não teria sido uma formulação vaga e prematura da reivindicação total? Sem dúvida. A reivindicação total poderá conduzir à criação duma vida nova? Aqui está o problema.»
E é indubitável um problema que se liga ao facto de que superar teoricamente a filosofia especulativa e impotente nascida deste mundo não é superar materialmente o mundo que também fez nascer a nova, e só aparentemente moribunda, filosofia da vida efectiva.
O materialismo histórico e dialéctico não pressupõe a necessidade do socialismo e do comunismo. A suprema ironia da obra de Marx está no facto de, ao mesmo tempo que acaba logicamente com a metafísica e com a nostalgia idealista duma teleologia do sentido humano, fornecer os argumentos teóricos do seu fracasso prático e, mediante essa autocrítica, da possibilidade do seu futuro.
As questões de Henri Lefebvre parecem, pois, patéticas. E, contudo…
Os relógios inventados pelo homem marcam a hora, e as possibilidades humanas estão ao alcance da sua realização.

Platão e Marx - O Pseudo-Marxismo

Por vezes, os marxistas, mesmo os intelectuais, deixam de se exigir o respeito pelos princípios e métodos do materialismo histórico-dialéctico, tendendo a esquematizar a realidade por força da preguiça intelectual e sobretudo pelas contradições de classes (agora cada vez mais inconscientes por força das circunstâncias políticas) que incentiva uma visão maniqueísta do mundo. Ficam com o nome de marxistas, apesar de nesse momento deixarem de o ser. Tal fraqueza é aproveitada pelos adversários, que censuram o marxismo tomando o falso pelo verdadeiro. Em todos os domínios do conhecimento e da práxis política e produtiva tal acontece. Não admira que ainda por vezes isso passe para a própria interpretação dos factos históricos e da sua relação com o desenvolvimento do pensamento filosófico, e que até se transfira para a visão geral que as pessoas, e outros intelectuais não marxistas, têm da sua História, política, social, económica e filosófica.

Dou aqui um simples exemplo, o da interpretação mecânica da relação entre pensamento e ser, entre a consciência socialmente constituída sob a forma de doutrinas e teorias e a sociedade que se organiza e produz, no importantíssimo estudo da sociedade helénica para a compreensão da nossa História, exemplo que deve chamar a atenção para a necessidade de, se os marxistas querem ser levados a sério na actividade teórica, têm que ser fiéis a si próprios na exigência dos seus métodos e princípios.
Não é evidente que os gregos tivessem um pensamento monolítico quanto a quaisquer dos domínios e níveis da realidade com que lidavam na teoria e na prática, da natureza, da sociedade, do ser humano. Um pensamento monolítico seria sinal duma civilização harmoniosa, não contraditória, na qual tudo seria bom para todos e a verdade, em consequência, única e evidente.
Quando se diz que havia um preconceito universalmente arreigado quanto ao trabalho e que só as actividades intelectuais e políticas eram consideradas autênticamente humanas, está-se a esquecer o que a esse propósito escreveram os próprios intelectuais helénicos, que seriam os que maior desprezo deveriam ter para com a praxis material.
Platão, o epítome do filósofo idealista, que passa por ser o mais intelectualista e preconceituoso contra o trabalho (físico, ou seja, explorador de minas, agrícola, construtor, artesanal e mercantil) e o amor (eros) sexual, escreve, nomeadamente em Politeia (por tradição renascentista traduzido impropriamente por A República), Livro VII, pela fala de Sócrates, numa passagem do diálogo situado em casa do rico e idoso Gláucon, dono de manufacturas militares, com um dos irmão de Platão, Gláucon, que as mais elevadas actividades intelectuais, como a matemática e a filosofia, devem, para além do seu supremo viso que é o conhecimento do Ser, servir os militares, os mercadores, os artesãos, e que a elevação ao conhecimento do Ser começa por procedimentos indutivos a partir das contradições da experiência sensorial, tanto na esfera da observação como na prática sexual, e finalmente que esse saber deve ser posto ao serviço da comunidade sob a forma de aperfeiçoamentos técnicos e políticos:

« – Ora bem. E vamos pôr a astronomia em terceiro lugar? Ou não te parece?
- Parece-me, sem dúvida, porquanto convém não só à agricultura e à navegação, mas não menos à arte militar, uma perfeita compreensão das estações, meses e anos.
- Divertes-me, por pareceres receoso da maioria, não vá afigurar-se-lhes que estás a prescrever estudos inúteis.» (República, 572 d-e)
É claro que há em Platão um desvalorizar do trabalho , desvalorizar sintomaticamente aliado do seu desprezo pela democracia directa ou representativa, mas é também claro que pela palavra de Gláucon ecoam as vozes dos mestres artesãos, dos donos de minas, dos mercadores e navegadores, assim como dos aristocratas que divisam o lucro na aplicação física, sobretudo militar mas também produtiva, do conhecimento, pois até estes não vivem do ar e o trabalho escravo ao seu serviço, por pouca inventiva técnica que incentivasse, mesmo assim não deixaria de ver com bons olhos algumas inovações mecânicas. O grande mito de Prometeu, que roubou o fogo aos deuses e ofereceu a tecnologia aos homens, é disso um reflexo ideológico.
Tal como todas as sociedades históricas, a Grécia é portanto, como o atestam as disputas filosóficas e ideológicas entre representantes pertencentes ou porta-vozes das classes sociais em conflito de interesses, uma unidade contraditória. É que a sociedade helénica (o marxismo não a poderia conceber doutro modo) não se apresenta (exemplificando um esquema básico que o vulgo gosta de fixar para ter a ilusão de que sabe) como uma dicotomia entre escravos e homens livres, mas, antes, como um mundo de interesses à vez comuns e de conflitos irredutíveis postos em acção pela aristocracia territorial, ociosa, militarista e exploradora, pelos agricultores, artesãos, comerciantes, pelos cidadãos pobres e dependentes, pelos metecos e escravos, e ainda pela fragmentação da Hélade numa multiplicidade de cidades-estado com regimes políticos muito diversos, frequentemente em guerra e que, de vez em quando, tinham que se unir para sobreviverem contra a investida de inimigos externos.
Numa sociedade tão conflituosa a todos os níveis, o monolitismo intelectual seria impossível.

Platão e Marx - O Pseudo-Marxismo

Por vezes, os marxistas, mesmo os intelectuais, deixam de se exigir o respeito pelos princípios e métodos do materialismo histórico-dialéctico, tendendo a esquematizar a realidade por força da preguiça intelectual e sobretudo pelas contradições de classes (agora cada vez mais inconscientes por força das circunstâncias políticas) que incentiva uma visão maniqueísta do mundo. Ficam com o nome de marxistas, apesar de nesse momento deixarem de o ser. Tal fraqueza é aproveitada pelos adversários, que censuram o marxismo tomando o falso pelo verdadeiro. Em todos os domínios do conhecimento e da práxis política e produtiva tal acontece. Não admira que ainda por vezes isso passe para a própria interpretação dos factos históricos e da sua relação com o desenvolvimento do pensamento filosófico, e que até se transfira para a visão geral que as pessoas, e outros intelectuais não marxistas, têm da sua História, política, social, económica e filosófica.

Dou aqui um simples exemplo, o da interpretação mecânica da relação entre pensamento e ser, entre a consciência socialmente constituída sob a forma de doutrinas e teorias e a sociedade que se organiza e produz, no importantíssimo estudo da sociedade helénica para a compreensão da nossa História, exemplo que deve chamar a atenção para a necessidade de, se os marxistas querem ser levados a sério na actividade teórica, têm que ser fiéis a si próprios na exigência dos seus métodos e princípios.
Não é evidente que os gregos tivessem um pensamento monolítico quanto a quaisquer dos domínios e níveis da realidade com que lidavam na teoria e na prática, da natureza, da sociedade, do ser humano. Um pensamento monolítico seria sinal duma civilização harmoniosa, não contraditória, na qual tudo seria bom para todos e a verdade, em consequência, única e evidente.
Quando se diz que havia um preconceito universalmente arreigado quanto ao trabalho e que só as actividades intelectuais e políticas eram consideradas autênticamente humanas, está-se a esquecer o que a esse propósito escreveram os próprios intelectuais helénicos, que seriam os que maior desprezo deveriam ter para com a praxis material.
Platão, o epítome do filósofo idealista, que passa por ser o mais intelectualista e preconceituoso contra o trabalho (físico, ou seja, explorador de minas, agrícola, construtor, artesanal e mercantil) e o amor (eros) sexual, escreve, nomeadamente em Politeia (por tradição renascentista traduzido impropriamente por A República), Livro VII, pela fala de Sócrates, numa passagem do diálogo situado em casa do rico e idoso Gláucon, dono de manufacturas militares, com um dos irmão de Platão, Gláucon, que as mais elevadas actividades intelectuais, como a matemática e a filosofia, devem, para além do seu supremo viso que é o conhecimento do Ser, servir os militares, os mercadores, os artesãos, e que a elevação ao conhecimento do Ser começa por procedimentos indutivos a partir das contradições da experiência sensorial, tanto na esfera da observação como na prática sexual, e finalmente que esse saber deve ser posto ao serviço da comunidade sob a forma de aperfeiçoamentos técnicos e políticos:

« – Ora bem. E vamos pôr a astronomia em terceiro lugar? Ou não te parece?
- Parece-me, sem dúvida, porquanto convém não só à agricultura e à navegação, mas não menos à arte militar, uma perfeita compreensão das estações, meses e anos.
- Divertes-me, por pareceres receoso da maioria, não vá afigurar-se-lhes que estás a prescrever estudos inúteis.» (República, 572 d-e)
É claro que há em Platão um desvalorizar do trabalho , desvalorizar sintomaticamente aliado do seu desprezo pela democracia directa ou representativa, mas é também claro que pela palavra de Gláucon ecoam as vozes dos mestres artesãos, dos donos de minas, dos mercadores e navegadores, assim como dos aristocratas que divisam o lucro na aplicação física, sobretudo militar mas também produtiva, do conhecimento, pois até estes não vivem do ar e o trabalho escravo ao seu serviço, por pouca inventiva técnica que incentivasse, mesmo assim não deixaria de ver com bons olhos algumas inovações mecânicas. O grande mito de Prometeu, que roubou o fogo aos deuses e ofereceu a tecnologia aos homens, é disso um reflexo ideológico.
Tal como todas as sociedades históricas, a Grécia é portanto, como o atestam as disputas filosóficas e ideológicas entre representantes pertencentes ou porta-vozes das classes sociais em conflito de interesses, uma unidade contraditória. É que a sociedade helénica (o marxismo não a poderia conceber doutro modo) não se apresenta (exemplificando um esquema básico que o vulgo gosta de fixar para ter a ilusão de que sabe) como uma dicotomia entre escravos e homens livres, mas, antes, como um mundo de interesses à vez comuns e de conflitos irredutíveis postos em acção pela aristocracia territorial, ociosa, militarista e exploradora, pelos agricultores, artesãos, comerciantes, pelos cidadãos pobres e dependentes, pelos metecos e escravos, e ainda pela fragmentação da Hélade numa multiplicidade de cidades-estado com regimes políticos muito diversos, frequentemente em guerra e que, de vez em quando, tinham que se unir para sobreviverem contra a investida de inimigos externos.
Numa sociedade tão conflituosa a todos os níveis, o monolitismo intelectual seria impossível.

Platão e Marx - O Pseudo-Marxismo

Por vezes, os marxistas, mesmo os intelectuais, deixam de se exigir o respeito pelos princípios e métodos do materialismo histórico-dialéctico, tendendo a esquematizar a realidade por força da preguiça intelectual e sobretudo pelas contradições de classes (agora cada vez mais inconscientes por força das circunstâncias políticas) que incentiva uma visão maniqueísta do mundo. Ficam com o nome de marxistas, apesar de nesse momento deixarem de o ser. Tal fraqueza é aproveitada pelos adversários, que censuram o marxismo tomando o falso pelo verdadeiro. Em todos os domínios do conhecimento e da práxis política e produtiva tal acontece. Não admira que ainda por vezes isso passe para a própria interpretação dos factos históricos e da sua relação com o desenvolvimento do pensamento filosófico, e que até se transfira para a visão geral que as pessoas, e outros intelectuais não marxistas, têm da sua História, política, social, económica e filosófica.

Dou aqui um simples exemplo, o da interpretação mecânica da relação entre pensamento e ser, entre a consciência socialmente constituída sob a forma de doutrinas e teorias e a sociedade que se organiza e produz, no importantíssimo estudo da sociedade helénica para a compreensão da nossa História, exemplo que deve chamar a atenção para a necessidade de, se os marxistas querem ser levados a sério na actividade teórica, têm que ser fiéis a si próprios na exigência dos seus métodos e princípios.
Não é evidente que os gregos tivessem um pensamento monolítico quanto a quaisquer dos domínios e níveis da realidade com que lidavam na teoria e na prática, da natureza, da sociedade, do ser humano. Um pensamento monolítico seria sinal duma civilização harmoniosa, não contraditória, na qual tudo seria bom para todos e a verdade, em consequência, única e evidente.
Quando se diz que havia um preconceito universalmente arreigado quanto ao trabalho e que só as actividades intelectuais e políticas eram consideradas autênticamente humanas, está-se a esquecer o que a esse propósito escreveram os próprios intelectuais helénicos, que seriam os que maior desprezo deveriam ter para com a praxis material.
Platão, o epítome do filósofo idealista, que passa por ser o mais intelectualista e preconceituoso contra o trabalho (físico, ou seja, explorador de minas, agrícola, construtor, artesanal e mercantil) e o amor (eros) sexual, escreve, nomeadamente em Politeia (por tradição renascentista traduzido impropriamente por A República), Livro VII, pela fala de Sócrates, numa passagem do diálogo situado em casa do rico e idoso Gláucon, dono de manufacturas militares, com um dos irmão de Platão, Gláucon, que as mais elevadas actividades intelectuais, como a matemática e a filosofia, devem, para além do seu supremo viso que é o conhecimento do Ser, servir os militares, os mercadores, os artesãos, e que a elevação ao conhecimento do Ser começa por procedimentos indutivos a partir das contradições da experiência sensorial, tanto na esfera da observação como na prática sexual, e finalmente que esse saber deve ser posto ao serviço da comunidade sob a forma de aperfeiçoamentos técnicos e políticos:

« – Ora bem. E vamos pôr a astronomia em terceiro lugar? Ou não te parece?
- Parece-me, sem dúvida, porquanto convém não só à agricultura e à navegação, mas não menos à arte militar, uma perfeita compreensão das estações, meses e anos.
- Divertes-me, por pareceres receoso da maioria, não vá afigurar-se-lhes que estás a prescrever estudos inúteis.» (República, 572 d-e)
É claro que há em Platão um desvalorizar do trabalho , desvalorizar sintomaticamente aliado do seu desprezo pela democracia directa ou representativa, mas é também claro que pela palavra de Gláucon ecoam as vozes dos mestres artesãos, dos donos de minas, dos mercadores e navegadores, assim como dos aristocratas que divisam o lucro na aplicação física, sobretudo militar mas também produtiva, do conhecimento, pois até estes não vivem do ar e o trabalho escravo ao seu serviço, por pouca inventiva técnica que incentivasse, mesmo assim não deixaria de ver com bons olhos algumas inovações mecânicas. O grande mito de Prometeu, que roubou o fogo aos deuses e ofereceu a tecnologia aos homens, é disso um reflexo ideológico.
Tal como todas as sociedades históricas, a Grécia é portanto, como o atestam as disputas filosóficas e ideológicas entre representantes pertencentes ou porta-vozes das classes sociais em conflito de interesses, uma unidade contraditória. É que a sociedade helénica (o marxismo não a poderia conceber doutro modo) não se apresenta (exemplificando um esquema básico que o vulgo gosta de fixar para ter a ilusão de que sabe) como uma dicotomia entre escravos e homens livres, mas, antes, como um mundo de interesses à vez comuns e de conflitos irredutíveis postos em acção pela aristocracia territorial, ociosa, militarista e exploradora, pelos agricultores, artesãos, comerciantes, pelos cidadãos pobres e dependentes, pelos metecos e escravos, e ainda pela fragmentação da Hélade numa multiplicidade de cidades-estado com regimes políticos muito diversos, frequentemente em guerra e que, de vez em quando, tinham que se unir para sobreviverem contra a investida de inimigos externos.
Numa sociedade tão conflituosa a todos os níveis, o monolitismo intelectual seria impossível.











XXIV
é um deslizar de geometrias
num mundo todo mudo
Uma maneira de dizer
pois és tu que não ouves o silêncio das vozes
os cantares de pedras pisadas
ao viés dos cânticos marítimos
e dos ventos de rudes respostas
Manténs-te alerta
suspiras um sopro vago
num monte de pedras
consegues distinguir a meda dos enganos
pelo dobrar dos lábios
e o crescer dos olhos
Ninguém te leva em palavras
querem-te arrastar em gestos
gastados
Os dias amodorrais são
os desconfiados planos
armados

de uma usura de frutos

XXIV
é um deslizar de geometrias
num mundo todo mudo
Uma maneira de dizer
pois és tu que não ouves o silêncio das vozes
os cantares de pedras pisadas
ao viés dos cânticos marítimos
e dos ventos de rudes respostas
Manténs-te alerta
suspiras um sopro vago
num monte de pedras
consegues distinguir a meda dos enganos
pelo dobrar dos lábios
e o crescer dos olhos
Ninguém te leva em palavras
querem-te arrastar em gestos
gastados
Os dias amodorrais são
os desconfiados planos
armados

de uma usura de frutos

XXIV
é um deslizar de geometrias
num mundo todo mudo
Uma maneira de dizer
pois és tu que não ouves o silêncio das vozes
os cantares de pedras pisadas
ao viés dos cânticos marítimos
e dos ventos de rudes respostas
Manténs-te alerta
suspiras um sopro vago
num monte de pedras
consegues distinguir a meda dos enganos
pelo dobrar dos lábios
e o crescer dos olhos
Ninguém te leva em palavras
querem-te arrastar em gestos
gastados
Os dias amodorrais são
os desconfiados planos
armados

de uma usura de frutos
Reprodução de imagens do livro do alfabeto do erotismo na URSS em 1931 pelo ilustrador, pintor e escultor Sergei Merkurov, um dos artistas preferidos de Estaline.
















Reprodução de imagens do livro do alfabeto do erotismo na URSS em 1931 pelo ilustrador, pintor e escultor Sergei Merkurov, um dos artistas preferidos de Estaline.
















Reprodução de imagens do livro do alfabeto do erotismo na URSS em 1931 pelo ilustrador, pintor e escultor Sergei Merkurov, um dos artistas preferidos de Estaline.