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Filosofia da Terra

Furar o Nevoeiro da Ideologia Burguesa. O Bem, a Verdade e o Belo - Paradigmas Unidos da Vida. Um Olhar e uma Voz Diferentes, Livres, Progressistas e Revolucionárias. Filosofia, Artes, Política, Acontecimentos, Reflexões.



LXIII
quer se navegue em bolina cerrada ou em popa arrasada
com velas em borboleta ou levado pela alheta de estibordo
as velas enfunam-se como se tivessem vontade própria
tal como a estrela da manhã e a estrela da tarde
astro errante e selvagem impróprio para se chegar
ao bom porto protegido do desatino das águas
onde se foi descarregar as mercadorias dos homens
o meio de vida que se transformou no fim da vida

Não se vê aquilo que as enche de uma força indomada
às velas que permitem ao navio seguir para vante
que é preciso tratar com o mais completo velame
preso ao mastro do traquete ao mastro real e à mezena
ao gurupés e à bujarrona com as gibas cevadeiras
velacho traquete gávea gata joanete vela da mezena

Nunca se vê o vento mas aquilo que o vento arrasta
quer levando consigo o que só resiste para ser levado
quer ludibriado pela malícia inventiva da vela latina
que o persegue com a própria força de quem ataca

É preciso pôr as mãos à frente do vento para sentir
não o que é não a composição das moléculas livres
mas a força invisível que faz sentir as próprias mãos
porque o sentido é um modo de tradução do sentido
para o sentido que o corpo dá aos dedos das mãos

Não vem para aqui a prudente navegação de cabotagem
que é de tão pouca sabedoria e tão escassa coragem
pois sabemos que ambas costumam ir de braço dado
quando a necessidade as casou sua última esperança

Aqui apenas conta quem acrescentou espaço ao tempo
e cruzou caminhos a povos uns a outros estranhos
chocando culturas e ovos daninhos de preconceitos
armando-se de sextantes mapas e intuições negras
revolvendo o pousio pacífico da terra orvalhada
com a sede das profusas lágrimas do ouro das espadas
abrindo as sendas do comércio a golpes de fé e balas
porque o deus verdadeiro é o senhor dos mais fortes
e só se salva do pó por todos pisado o que entrega
a alma aos trabalhos de cristo e o corpo aos negócios
do mundo racional e económico do barão rothschield

Significa isto outra coisa mais senão o ovo de colombo
Significa isto o anseio do mar como da bolsa do feto
onde a morte se assemelha mais a um renascimento
quando não se podem devolver os corpos ao barro
e os pescadores dos mundos regressam em sombras
como fantasmas fatais de esperanças mal paridas
Significa isto uma fuga dos outros para o rosto oculto
daqueloutro que somos nós e ainda não é nascido
Significa isto o avanço da imperativa vontade de ser
que já as crianças manifestam quebrando as pernas
ao boneco e afundando o barco que era o seu orgulho
Significa isto outra coisa mais senão o ovo de colombo
É por tudo isto que se aperfeiçoa a arte de navegar

Foi uma viagem de circum-navegação em todos nós
O fechar do círculo das cores e da escala de mohs
o espaço medido pelo tempo na equação da velocidade
o tempo ganhando espaços o tempo medido a espaços
do círculo vicioso e geocêntrico da esfera celeste
tenda ora branca ora negra mais real que a realidade
tenda que à contra-luz expõe a espinha dorsal da noite
como um animal protector desde o começo das eras
pois como os tempos geológicos também os tempos
da mente se sobrepõem em camadas de medo e fé
os estratos recentes sustentados pelos ancestrais
o tempo acumulando colecções de prestidigitadores
e camada por camada de novos espaços de bens
em que as raízes se soterram mas um outro sentido
se descobre nos braços de mar do amplo peito humano

É na necessidade que fica a necessidade da esperança
a sua malícia desdenhosa e o seu amargo egoísmo
Nenhum amor prendia ao porto a corda do pescoço
de fernão de magalhães mas dívidas que contraíra
em batalhas ao serviço da coroa pois toda a pátria
não é senão a coroa de espinhos duma guerra civil
Nenhum amor pois não há ninguém para amar um coxo
Nada melhor para fugir de si do que circum-navegar-se
mas foi em busca de especiarias que partiu para voltar
e levou homens alistados à força doutras vontades
que bem-aventurado se circunvagou completamente

Ninguém pode terminar a sua viagem de ida e volta
para conhecer o alfa e o ómega da massa de que é feito
para alinhavar o seu próprio eu com os fios do globo
e descobrir num nó do tecido o espaço do seu instante

Ficará na pirâmide das caveiras de olhos profundos
a acumular os sedimentos que o presente não quer
Ficará como matéria de um passado que passou
massa inerte e resistente a vontades que vão ser
e que fazem seus os horizontes antes desflorados

Talvez fique só na lembrança uma vaidade de herdeiros
a primeira circum-navegação do planeta explorado
com o abraço da ocidental serpente constritora

Talvez fique também a memória de antónio pigafetta
«Comiam bolachas, e quando estas se acabavam,
comiam as migalhas, que estavam cheias de vermes
e exalavam um forte cheiro a urina de rato. Bebiam
água amarelada, pútrida já há alguns dias. E comiam
o couro que forrava a enxárcia maior para evitar que
se quebrasse... Punham o couro de molho no mar
durante quatro ou cinco dias, coziam-no numa panela
e comiam, juntamente com muita serradura.» E
quem pode dizer se eram heróis ou simples bestas

E para que o oceano continue a cortar-se com a faca
de uma fome de cão e da ânsia prometaica de poder
e para que o oceano continue a ser a estrada e o seio
das civilizações que esperam pelo tempo de nascer
não era possível aceitar o pedido de regresso a espanha
e os cabecilhas do motim decapitados desmembrados
esquartejados e os pedaços suspensos de quatro forcas

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