Pierre Bourdieu, no seu ensaio “O Poder Simbólico” (Difel,Memória e Sociedade, 1994), defende a tese “ O poder simbólico é esse poder invisível, o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhes estão sujeitos ou mesmo que o exercem. Poder quase mágico, que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou económica), só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.”
"Lembrei-me desta brilhante tese de Bourdieu ao ver as comemorações dos setenta anos do Dia D, o desembarque na Normandia das tropas dos EUA, Inglaterra e França Livre.
De como esse dia é glorificado como sendo o dia que marcou a viragem na II Guerra Mundial e o princípio da viragem a favor dos aliados, URSS, Inglaterra, EUA, França, contra as forças do Eixo. É uma reversão da história da guerra que coloca os norte-americanos como os grandes salvadores d Europa da barbárie nazi. Apaga-se com uma monumental manobra de propaganda, dos meios de comunicação social aos estudos históricos e ao cinema, a verdadeira e factual história da II Guerra Mundial. Nisso os norte-americanos são mestres. A saga da conquista do Oeste é exemplar nas centenas de filmes em que glorificam os cowboys, acentuando o mito do justiceiro solitário, o triunfo do individualismo, o embrião do american way of life, transformando uma história de inomináveis brutalidades e arbitrariedades na mitologia dourada do Oeste Selvagem. Cormac McCarthy, baseado em factos históricos ocorridos na fronteira entre os EUA e o México, em meados do séc. XIX, desmonta e subverte essa cosmogonia ao narrar a violência que foi essa expansão, no romance “Meridiano de Sangue” Enormes perdas de vidas humanas, de aparatos militares, de recursos económicos para os soviéticos, consequência dos sucessivos adiamentos da abertura de uma frente ocidental, muito reclamada por Estaline, acusando Churchill e Roosevelt de estarem a poupar vidas ocidentais às custas de vidas soviéticas. Hoje muitos historiadores põe em causa a influência do Dia D, no curso da guerra. Três quartos das forças nazis estavam na Frente Oriental, recuavam frente ao Exército Vermelho, quando, finalmente, em 6 de Julho de 1944, se invadiu a Normandia.
Essa entronização do Dia D, tem outros efeitos menos visíveis mas igualmente importantes. Atira para plano longínquo o facto de Hitler ascender ao poder político apoiado pelos grandes conglomerados industriais alemães, nomeadamente I.G.Farben, Thyssen, Krupps, todas largamente beneficiárias do trabalho escravo recrutado nos campos de concentração. Grupos económicos onde Rockfeller, Rothschild e outros tinham participações significativas. A I.G.Farben o gigante da indústria química da Alemanha era uma divisão da Standard Oil de Rockfeller. Esses magnatas norte-americanos financiaram de boa vontade Hitler.
Não só esses foram fortes esteios da Alemanha nazi. Prescott Bush, avô de George Bush, um especulador financeiro de Wall Street que até esteve implicado num golpe militar contra Roosevelt em 1934 para impor um regime fascista nos EUA, foi um grande financiador do Partido Nazi, através do Union City Bank. Também será de lembrar que outro magnata norte-americano Henry Ford, também com investimentos não negligenciáveis na Alemanha nazi, fez o elogio do Ku Klux Klan do seu “genuíno “americanismo”. Muito admirado pêlos ideólogos nazis, Henry Ford, condenava a Revolução Bolchevique acusando-a de ser o produto de uma conspiração judaica. Fundou até uma revista, o Oearborn Independent, cujos artigos publicados foram reunidos em 1920 num único volume intitulado “O Judeu Internacional”. O livro transformou-se numa referência central do anti-semitismo internacional. Foi traduzido para alemão e adquiriu grande popularidade. Nazis destacados, como Von Schirach e Himmler reconheceram ter sido inspirados ou motivados por Ford. Segundo Himmler, o livro de Ford desempenhou um papel “decisivo” não só na sua formação pessoal, como também na do Führer. Os estrénuos campeões da liberdade e da democracia apoiaram e financiaram os nazis, bem depois de a guerra ter começado.
O Dia D, inventado e celebrado como o dia que decidiu a vitória dos aliados, estende um diáfano manto sobre esses factos históricos. Foi de facto importante. Foi sobretudo uma vitória dos EUA, do império norte-americano. A II Grande Guerra foi terminante para que os EUA, que com a I Grande Guerra tinha alcançado uma época de prosperidade sem precedentes, impusessem o seu poder no mundo.
Foi a II Guerra Mundial que possibilitou a crise financeira de 1929 se resolvesse. O New Deal de Roosevelt, iniciado em 1932, no pico da crise, introduziu uma forte intervenção do Estado na economia. Procurando regular os mercados e o funcionamento da Bolsa, impedindo investimentos especulativos e de alto risco. Impulsionando uma forte política de investimento na construção civil com um programa intenso de obras públicas, a New Deal começou em força, foi perdendo fulgor e estava a avançar muito devagar. A guerra resolveu os problemas dessa crise capitalista. Obrigou os governos a fazer encomendas gigantescas de aço, máquinas, peças, artefactos que mobilizaram toda a indústria. O problema do desemprego, há que o dizer com toda a brutalidade, resolveu-se com a mobilização de milhões de desempregados e com os milhões de seres humanos mortos nos campos de batalha
e fora deles com bombardeamentos a alvos industriais e civis.Leia-seMatadouro Cinco de Kurt Vonnegut, soldado americano prisioneiro de guerra em Dresden, quando norte-americanos e ingleses bombardearam indiscriminada e desnecessariamente essa cidade, cercada pelo Exército Vermelho, à beira de se render. Um livro duro, duríssimo em que as descrições muito estilo Vonnegut são hilariantes sem permitir gargalhadas. Livro alvo de vários ataques da intelligentsia norte-americana que negaram até ser impossível, a brutalidade dessa realidade, agora também branqueada depois da queda do Muro de Berlim, em que só falta ressuscitar centenas de milhares de mortos.
O Dia D foi e é fundamental para o poder simbólico ocultar o poder real e efectivo como se conseguiu em Bretton Woods, instituindo os instrumentos de dominação financeira dos EUA. O BIRD, Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento que seria mais tarde dividido entre o Banco Mundial e o Banco para Investimentos Internacionais, e o Fundo Monetário Internacional (FMI). As principais disposições do sistema Bretton Woods foram a obrigação de cada país adoptar uma política monetária que mantivesse a taxa de câmbio de suas moedas dentro de um determinado valor indexado ao dólar, cujo valor, por sua vez, estaria ligado ao ouro numa base fixa de 35 dólares por onça troy. Dotar o FMI de financiamento para suportar dificuldades temporárias de pagamento. Na ausência de um mercado europeu forte para os bens e serviços estado-unidenses a economia dos EUA seria incapaz de sustentar a prosperidade que alcançara durante a guerra. Teoria claramente exposta por Bernard Baruch, financeiro, conselheiro de presidentes e congressistas, que sintetizou o espírito de Bretton Woods no início de 1945: “se eliminarmos o subsídio ao trabalho e à competição acirrada nos mercados exportadores, bem como prevenir a reconstrução de máquinas de guerra, que prosperidade a longo termo nós teremos.” Assim, os Estados Unidos usaram a sua posição dominante para restaurar uma economia mundial aberta, unificada sob controlo dos EUA, que deu aos EUA acesso ilimitado a mercados e matéria-prima.
Tudo se acentuou quando, em 1971, frente às pressões crescentes na procura global por ouro, depois da libra esterlina se ter afundado deixando de ser moeda de troca no comércio internacional, Richard Nixon, então presidente dos Estados Unidos, suspendeu unilateralmente o sistema de Bretton Woods, cancelando a conversibilidade directa do dólar em ouro O domínio passou a ser global, com uma moeda padrão no comércio internacional, o dólar. Com uma moeda a progressivamente ocupar o lugar do ouro nas reservas dos bancos centrais.
Era só por a tipografia a imprimir a nota verde, como a até hoje e, perigosamente, o têm feito. Ficaram com as mãos ocupadas com a máquina de impressão e livres para manipularem a dívida externa, como o fizeram, reduzindo-a contabilisticamente de uma penada em 35%. Um forrobodó que tem feito os EUA viver à conta dos outros países e que só nos últimos anos está a ser posto em causa com a emergência de outros pólos económicos, com outros países a fazer as trocas comerciais em euros ou nas suas moedas nacionais, reduzindo a importância do dólar, o maior produto de exportação dos EUA. Cientes da sua fragilidade defendem com ameaças, canhões e propaganda o seu império, porque quem continuar a exercer poder unipolar que tem na dólar e na sua força militar o principal instrumento de dominação.
O Dia D tem pouco significado para o fim da guerra. Tem um enorme significado simbólico para os EUA. Sobretudo agora, quando são uma grande potência militar e uma potência económica em decadência. Um brutal perigo para a paz mundial como se tem observado nos últimos anos. O poder simbólico do Dia D, o modo como foi construído e mantido ao longo de setenta anos, ensina-nos a ver a importância da manipulação histórica e informativa na formação da opinião pública."